Usufruto: seus sujeitos e objeto

(da série Registros sobre registros n. 202)

                                                 Des. Ricardo Dip

818. Por o usufruto consistir, como visto, num direito real sobre coisa alheia, há coexistência da propriedade com o usufruto –ou seja, coexistência da titularidade de uma substância com a titularidade de um proveito.

Para aqui empregar a interessante distinção de Hedemann, o proprietário tem direito à substância da coisa; o usufrutuário, ao proveito dela; nesta mesma linha, Clóvis Beviláqua falou em “existência simultânea de dois sujeitos do direito”, concomitância que, na relacionação deles com as coisas, atende à distinção dos direitos à substância e ao usus et fructus. Na mesma trilha, o Conselheiro Lafayette fala em “coincidência de direitos sobre a mesma coisa”, mas apenas num sentido negativo, qual o de um e outro, o proprietário e o usufrutário, terem ambos de respeitar os direitos que a cada qual lhes cabe –consoante uma regência, tal abaixo se referirá, preventiva de litígios.

Isso se dá, como já o temos indicado, por meio de um desdobramento dos atributos do domínio (ou seja, a elasticidade dominial), de sorte que, no aspecto subjetivo, tem-se, de um lado, o proprietário da coisa (titular da substância), e, de outro lado, o usufrutuário, titular do proveito; e num plano objetivo, a substância e distintamente o proveito da coisa, de modo que, em ambos os quadros –subjetivo e objetivo–, ocorre a atualização da potência dominial de elasticidade ou flexibilidade de seus atributos (vale dizer, passa-se da potencialidade de desmembramento de atributos ao ato desse desdobramento).

Isso, no entanto, acarreta a necessidade prudencial de uma regência jurídica da relação entre as titularidades, de maneira a evitar conflitos (pretendendo-se preexcluí-los formalmente pela normativa): um relacionamento de composição, que, exatamente à conta da elasticidade do domínio, é tema comum nas relações jurídico-reais. Lê-se, a propósito, na doutrina de José de Oliveira Ascensão:

“Os exemplos de relações propter rem com a função de garantir a pacífica coexistência dos direitos em causa são em extremo numerosos. Assim, quando a lei dispõe que «o usufrutuário deve usufruir a coisa, como o faria um proprietário prudente», estabelece uma relação cuja função é, delimitando os poderes do proprietário e do usufrutuário, garantir a pacífica coexistência dos direitos em causa, pela eliminação dum conflito”.

Ao desmembrar-se da proprietas rei o atributo do usufructus, o regime de relacionação parece, ao menos teoricamente, muito simples, porque o titular do direito à substância tem apenas, contra o usufrutuário, a faculdade de exigir o respeito à conservação da coisa, respeito que, de resto, é algo a que tem direito o dono da res perante qualquer outro terceiro. Note-se que a expectativa de consolidação dominial –direito que se tem por atribuído ao proprietário da coisa usufruída– é um anexo derivado do mesmo direito de conservação da res.

Pois bem, esse dominus rei –tão destituído, como visto, de poderes efetivos sobre a coisa usufruída por terceiro– pode ser tanto pessoa física, quanto jurídica, e nada impede sejam domini rei admitidos à relação real de usufruto o conjunto de todos os condôminos, dispondo sobre a coisa comum (Conselheiro Lafayette). Titular da nuda proprietas –a nua propriedade ou propriedade de raiz–, o dono da coisa desfalca-se dos atributos de seu  uso e fruição, reduzindo-se, portanto, ao só direito de a ver conservada e à expectativa de sua consolidação (ao tempo em que se extinga o usufruto), como resulta da ideia de reditus proprietatis ad unitatem suam –o regresso ou retorno do domínio à unidade–, que é de natureza mesma, centrípeta, da elasticidade dominial.

Álvaro D’Ors observou, com sua acuidade costumeira, que, bem vistas as coisas, o usufruto é uma propriedade temporal, uma propriedade de que se subtrai, entretanto, o atributo de disposição da res, e isso exatamente por ser um domínio temporal. Essa inteligente aproximação –ainda que no estrito plano da ciência do direito possa soar heterodoxa– é de todo expressiva da realidade das coisas: quando o Digesto refere a cláusula salva rerum substantia, não o faz, apenas e em primeiro lugar, com um critério econômico, qual o do respeito à integridade natural da res, mas também e principalmente com um sentido jurídico: o da privação do atributo de dispor da coisa (é ainda isso lição de D’Ors).

Por isso mesmo é que, destituído do poder de uso e desfrute da coisa, o dono é designado por nudus proprietarius, indício gráfico da pouca efetividade prática (em ato) que lhe restou do domínio desfalcado.

819. No outro polo da relação jurídica de usufruto está a pessoa do usufrutuário, que é o titular do direito temporário de usus et fructus da coisa alheia (titularidade de raiz, titularidade transitória).

Usufrutuários podem ser pessoas tanto físicas, quanto jurídicas, admitindo-se ainda a contitularidade do usufruto, ou seja, que haja uma pluralidade de pessoas a quem se reporta o direito do uso e fruto da coisa alheia; essa pluralidade é, em ampla maioria das vezes, a que se diz de mão comum (pluralidade mancomunal ou de matiz germânico –vidē Martin Wolff).

Também pode instituir-se usufruto em favor dos nascituros: assim opinou Carvalho Santos, entendimento que parece admitir-se também à luz do novo Código civil brasileiro. Com efeito, se, conforme enuncia o art. 542 desse Código, “a doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal”, aparenta viável que se concedam ao nascituro os atributos de uso e de fruição da coisa que poderia até ser-lhe doada. Por mais, deixa-se a ressalva, de que o argumento a maiori ad minus possa ser inadequado em algum caso (relembre-se aqui o já antes comentado caso da Lei belga Vandelverde, de 29-8- 1919), não se avista, prima facie, na hipótese do usufruto em favor do nascituro, motivo para excluir a instituição em seu benefício, suposto, é certo, seja ela aceita pelo representante legal do favorecido. Valha-nos aqui, por bastante, para explicar esse argumento, a expressão popular com que ele se refere –quem pode o mais, pode o menos– e que é indicativa de uma clareza conceitual muito difícil de superar-se ainda que o seja pelas mais rigorosas teorias da argumentação: não falta mesmo quem não se escuse de acolhê-la em meio a análises mais profundas do argumento (p.ex., Chaïm Perelman, em Logique juridique: Nouvelle rhétorique, reporta-se ao brocardo qui peut le plus, peut le moins)

Note-se que, do fato de o usufruto ser direito sobre coisa alheia, forçoso é extrair, com rigor, não possa um condômino da res adquirir o direito de usufruto sobre a fração ideal de outro comproprietário da mesma coisa. Dar-se-ia nessa hipótese uma reunião das titularidades de substância e de proveito, uma conjugação ad unum (pode mesmo pensar-se em um retorno ad substantiam) dos atributos dominiais que antes desfalcavam a unidade da proprietas. Tem-se, pois, neste quadro, o fenômeno da consolidação do domínio (cf. Rui Pinto Duarte; no direito brasileiro posto, veja-se o inc. VI do art. 1.410 do Cód.civ. de 2002).

Compreenda-se, todavia, que coisa diversa é um condômino adquirir direitos de aproveitamento –de caráter obrigacional– sobre a parte ideal de outro comunheiro (Hedemann), porquanto, já aí, não há relação jurídico-real, não se pondo em tela o desdobramento dos atributos do domínio e o reditus ou regressus ad unum; tudo se passa na esfera somente obrigacional.