Usufruto de usufruto e outros usufrutos

(da série Registros sobre registros n. 208)

                                                 Des. Ricardo Dip

 

  1. 830. Tem-se à vista, pois, que a transmissibilidade do direito – ou sua “cessibilidade”– é a clave rotineira com que se revela ser esse direito suscetível de usufruto. Dessa maneira, para que tomemos um exemplo, já por força da norma do art. 1.372 do Código civil brasileiro, é de concluir que o direito de superfície pode ser objeto de usufruto; diz esse dispositivo do Código: “O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do superficiário, aos seus herdeiros” (caput).

 

É preciso, porém, considerar mais detidamente a possibilidade de a servidão e o próprio usufruto serem objeto de usufruto.

 

A servidão predial –é dizer, a que se estabelece entre imóveis (dominante e serviente)–, é sempre de duração permanente ou indefinida no tempo (Carlos Roberto Gonçalves), sob pena de reduzir-se a mero direito pessoal, de crédito (Caio Mário da Silva Pereira), e apenas se extingue por impossibilidade física e lógica (destruição de um dos prédios –Arnaldo Rizzardo) ou pelas causas previstas em lei (renúncia; cessação para o prédio dominante da utilidade ou da comodidade da servidão; resgate pelo dono do imóvel serviente; reunião dos prédios sob um mesmo domínio; supressão de obras; não uso pelo prazo contínuo de dez anos –arts. 1.388 e 1.389 do Código civil brasileiro; desapropriação: art. 1.387 do mesmo Código). Note-se, portanto, que a mudança subjetiva da servidão –ou seja, a substituição de um ou ambos seus sujeitos, ativo e passivo– não é causa de sua extinção (cf. Mário Tavarela Lobo), de modo que a servidão adere “perpetuamente” ao prédios dominante e serviente, e “inseparavelmente os acompanha em todas as mutações por que passam” (Conselheiro Lafayette).

 

É de admitir (mas, como se verá, secundum quid) que a servidão imobiliária possa constituir-se, pois, objeto de usufruto, mas não parece que isso calhe sem que o usufruto recaia sobre o próprio prédio dominante. Leia-se o que disse Carvalho Santos: as servidões reais “não podem ser objeto do usufruto, isto porque não são elas um direito existente de modo autônomo, sendo, ao invés, inseparável do imóvel”; daí que não se possa “conceber a servidão real separada e independente do prédio”. Assim, prosseguiu esse autor, não será possível instituir um usufruto de servidão de aqueduto sem que, ao mesmo tempo, haja o estabelecimento da servidão dos campos irrigáveis a que se destina essa servidão.

 

Conclui-se, dessa maneira, que, embora caiba o usufruto de servidão predial, ele não pode ser autônomo, senão que, isto sim, há de ser parte do usufruto do imóvel dominante.

 

  1. 831. Passemos agora a examinar a possibilidade de o usufruto ter por objeto um outro usufruto.

 

A doutrina brasileira e nossa jurisprudência pretoriana –assim já de há muito observara Carvalho Santos– não admitem a constituição do usufruto de usufruto. Delas divergiu o mesmo Carvalho Santos, acenando à falta de vedação legal e ao precedente romano em que o objeto do usufruto era o direito mesmo (ius ipsum) e não somente os frutos percebidos pelo usufrutuário (non fructus qui percipiuntur), tanto que não estava ele, em caso algum, obrigado a restituir esses frutos.

 

A questão não se isenta de controvérsia. É verdade que, entre nós, o usufruto é intransferível: “Não se pode transferir o usufruto por alienação…” (primeira parte do art. 1.393 do Código civil brasileiro). Clóvis Beviláqua nessa característica aponta a principal vantagem do usufruto: “O usufruto é, ordinariamente gratuito, e criado para beneficiar alguém, dando-lhe meios de prover sua subsistência ou, pelo menos, fornecendo-lhe para isso subsídio. Sendo alienável, o usufruto não poderia satisfazer, plenamente, a esses intuitos”.

 

Calha, todavia, que o exercício do direito de usufruto “pode ceder-se por título gratuito ou oneroso” (segunda parte do art. 1.393 do mesmo Código civil). Comentou, a propósito, Clóvis Beviláqua ser “inútil e vexatório exigir que o titular do usufruto gozasse de coisa, pessoalmente; ele o usufrui, igualmente, alugando-a ou cedendo a outrem o exercício do seu direito”. No mesmo sentido, Lafayette: “(…) entendida a intransmissibilidade em termos absolutos, o usufruto seria totalmente inútil, desde que ao usufrutuário não fosse possível fruir a coisa pessoalmente, como se lh’o impedissem a natureza de suas ocupações, a sua idade, moléstias”.

 

Saliente-se que a cessão desse exercício sequer supõe a divisão do usus e do fructus  –porque abrange ambos os atributos–, de sorte que isso não seria sequer um caminho legítimo de justificação do usufructus tantum fructuum (usufruto apenas dos frutos), que, por certo, não equivaleria ao completo usufruto do usufruto –usufructus usufructus.

 

Pode ir-se além, como se verá, pois ainda que se admita ceda o titular usufrutuário o exercício fragmentado do solum usus ou do solum fructus, sequer caberá cogitar de um usufructus tantum usus, quanto não se permite reconhecer um usufructus tantummodo fructus.

 

É que, e isto já o advertira Clóvis Beviláqua, a mera cessão de exercício de um direito real (ou de algum de seus atributos) não possui transcendência de sua ordem correspondente, que é apenas a pessoal ou de crédito: “Quem adquire o exercício do usufruto ou de uma de suas faculdades, em separado –disse Clóvis–, adquire, somente, um direito pessoal”. Não era diverso o entendimento do Conselheiro Lafayette: “(…) o terceiro não adquire direito real sobre a coisa frutuária: o direito que lhe vem do seu contrato como usufrutuário é meramente pessoal, como o direito do locatário”.

 

O consequente dessa afirmação é o de que o cessionário do exercício do usufruto não tem direito oponível ao proprietário do bem objeto, limitando-se à possibilidade de opô-lo ao usufrutuário cedente.

 

Bem por isso não se avista, prima facie, admissível o registro predial da cessão do exercício do usufruto.

 

  1. 832. Iniciemos agora, em rápida incursão, alguma referência às espécies de usufruto, empolgando aqui por guia a classificação sintetizada por Ademar Fioranelli em seu estudo O direito real de usufruto, apresentado, em Foz do Iguaçu, no mês de setembro de 1987, durante o XIV Encontro Nacional dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil.

 

Essa divisão fundou-se em quatro critérios, a saber, os da causa, do objeto, da extensão e da duração do usufruto.

 

Segundo a causa, classifica-se o usufruto em legal e convencional (ou voluntário).

 

Legal –usufructus ex vi legis–, também designado de usufruto legítimo, é o que provém diretamente de preceito legal, como “efeito imediato da lei” (Lafayette). Assim, ad exempla, o usufruto dos pais sobre os bens do filho menor (cf. inc. I do art. 1.689 do Código civil brasileiro: “O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar: I - são usufrutuários dos bens dos filhos”), o usufruto do cônjuge sobre os bens do outro (inc. I do art. 1.652 do mesmo Código: “O cônjuge, que estiver na posse dos bens particulares do outro, será para com este e seus herdeiros responsável: I - como usufrutuário, se o rendimento for comum”), o dos silvícolas (vidē § 2º do art. 231 da Constituição brasileira de 1988: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”).

 

Convencional é o usufruto instituído por meio de atos voluntários, sejam inter vivos (contratos), sejam causa mortis (testamentos).

 

Prosseguiremos.