(da série Registros sobre registros n. 206)
Des. Ricardo Dip
826. Tendo em conta que estamos observando, para tratar dos títulos inscritíveis no registro de imóveis, a ordem adotada no inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, só muito à frente calharia o exame específico da concessão de direito real de uso especial para fins de moradia, mas, por agora, há necessidade de prontamente algum seu tratamento para podermos responder se esse direito real pode ser objeto de usufruto. Assim, pois, teremos de devotar algumas linhas sobre essa concessão.
A Constituição nacional de 1988, em seu art. 183, depois de prever a usucapião especial urbana (ou pró-moradia) –“Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural” (caput)– indicou, em seu § 1º, a figura da concessão de uso, para suprir a impossibilidade de o prédio de domínio –quer o de uso comum do povo, quer o de uso especial, quer, enfim, o dominical– público ser objeto da usucapião (cf. § 3º do art. 183: “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”). Tal se verá adiante, houve como que um espelhismo entre essa usucapião especial e a concessão de direito real de uso de imóvel público para fins de moradia, atendendo-se à paridade entre os sacrifício impostos ao domínio privado e ao domínio público.
Passados mais de dez anos, expediu-se, em setembro de 2001, a Medida provisória 2.220, cujo art. 1º dispunha: “Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural” (cf. também arts. 2º e 9º). Antes mesmo de uma primeira alteração desse texto –com a Medida provisória 759/2016 (de 22-12; art. 66)–, a Lei 10.257/2001 (de 10-7) enunciara em seu art. 9º:
“Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
- 1º O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
- 2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
- 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.”
827. Examinemos agora os requisitos dessa concessão de direito real de uso especial para fins de moradia:
(i) ser o imóvel urbano e de domínio público; que o objeto da concessão seja prédio de domínio público é o que se extrai do confronto com a usucapião prevista no caput do art. 183 da Constituição federal: “em relação a imóveis públicos aplica-se a concessão de uso, com a outorga do respectivo título de concessão de uso previsto no mesmo § 1º [do art. 183], já que o § 3º expressamente proíbe o usucapião de imóveis públicos” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, na obra coletiva Estatuto da cidade, coordenada por Adilson Abreu Dallari e Sérgio Ferraz; cf., no mesmo sentido, brevitatis causa, Adriano Ferriani, José dos Santos Carvalho Filho, Lucas Rocha Furtado); e que se trate de imóvel urbano, isto se lê no caput do art. 9º da Lei 10.257, de 2001: “Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana (…)”;
(ii) ter o imóvel superfície não superior a 250 m2: é o que enuncia o mesmo caput do art. 9º da Lei 10.257, guardando-se, então, correspondência com a previsão constitucional relativa aos prédios de domínio privado que, em situação símile, podem adquirir-se por meio da usucapião especial pró-moradia (caput do art. 183);
(iii) possessão do imóvel, pelo adquirente, com animo domini e de modo ininterrupto e pacífico: assim o diz o caput do art. 9º da Lei 10.257: “Aquele que possuir como sua (…)”. Ter posse com ânimo de dono (animus domini) é possuir a res com “a intenção de ter a coisa como sua, não bastando a opinião ou convicção de ser dono (opinio seu cogitatio domini), uma vez que necessário seria a vontade de ser ter a coisa como sua –animus domini” (Benedito Silvério Ribeiro, no justamente célebre Tratado de usucapião); há de ser, além disso, posse ininterrupta e pacífica: fazendo-se aqui abstração de um possível discrimen entre as noções de posse contínua e de posse ininterrupta, dá-se esta última quando não se tenha a possessão interrompido ou cessado de modo natural (quando não haja atos de posse, até mesmo em caso de esbulho, se o possuidor não intentar os meios interditais para a recuperação possessória dentro de um ano da espoliação) ou de modo civil (que ocorre quando o poder público adota medidas de recobro da posse antes do prazo de aquisição do direito do possuidor, qual seja, neste quadro, o de cinco anos); pacífica, enfim, é, em sentido amplo, a posse exercitada sem oposição (empolga, pois, a ideia de tranquilidade de exercício), ainda que, em acepção estrita, a pacificidade da posse diga só respeito a sua aquisição sem violência (cf., a propósito, Silvério Ribeiro, o art. 3º da Medida provisória 2.220, de 2001: “Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1º e 2º também aos ocupantes, regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até duzentos e cinquenta metros quadrados, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento”);
(iv) posse do imóvel por cinco anos até 22 de dezembro de 2016: o prazo de cinco anos de possessão do prédio público –ainda uma vez em paralelo com o da usucapião especial para moradia (caput do art. 183 da Constituição)– vem indicado tanto na Medida provisória 2.220/2001 (art. 1º), quanto no art. 9º da Lei 10.257, de 2001; esse prazo deve completar-se até 22 de dezembro de 2016: de início, a Medida provisória 2.220 assinara o termo de 30 de junho de 2001 (art. 1º); alterou-se, contudo, pela Medida provisória 759/2016 (art. 1º) e por meio da Lei 13.465/2017 (de 11-7; art. 77); sublinhe-se a admissibilidade da acessão de posses (vidē o § 1º do art. 2º da Medida provisória 2.220: “O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas”);
(v) ser o imóvel destinado à moradia do possuidor ou de sua família: isto por igual está expresso no caput do art. 9º da Lei 10.257 e já também se indicara na Medida provisória 2.220, de 2001;
(vi) que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel, quer urbano, quer rural: assim se lê na parte final da norma do caput do art. 9º da Lei 10.257; deve estender-se a proibição à hipótese de o possuidor ser concessionário de outro imóvel (cf. Adriano Ferriani), para atender à lógica do sistema, certo que se prevê extinguir-se a concessão se “o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural” (inc. II do art. 8º da Medida provisória 2.220), além de que o direito de concessão especial para moradia não possa reconhecer-se “ao mesmo concessionário mais de uma vez” (§ 2º do art. 1º da Medida provisória 2.220).