Sobre o registro das incorporações, instituições e convenções de condomínio (sqq. -nona parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 244)

                               Des. Ricardo Dip

             

              907. A Lei 4.591, de 1964, exige também, para o registro da incorporação edilícia, que se apresente certidão relativa a ônus reais sobre o imóvel objeto do empreendimento (parte final da alínea b do art. 32).

              Que se entende por ônus reais?

              Ao menos já com a Lei 1.237, de 24 de setembro de 1864, constava de nosso direito a referência a ônus reais: “O registro geral compreende: A transcrição dos títulos da transmissão dos imóveis susceptíveis de hipoteca e a instituição dos ônus reais” (art. 7º), e eles vinham elencados de maneira taxativa no art. 6º da mesma lei: “Somente se consideram ônus reais: a servidão; o uso; a habitação; a anticrese; o usufruto; o foro; o legado de prestações ou alimentos expressamente consignados no imóvel”.

              Afirmou-se na lei, quanto a esse ônus, a necessidade de seu registro, porque não poderiam “ser opostos aos credores hipotecários, se os títulos respectivos não tiverem sido transcritos antes das hipotecas” (§ 2º do art. 6º), e o atributo da sequela –“os ônus reais passam com o imóvel para o domínio do comprador ou sucessor” (§ 3º do mesmo art. 6º).

              Também indica a Lei 1.237 a razão de ser da expressão reais ali adjunta ao vocábulo ônus: “Os outros ônus que os proprietários impuserem aos seus prédios se haverão como pessoais, e não podem prejudicar aos credores hipotecários” (§ 1º do art. 6º). Assim, não se negava a existência de situações onerosas sobre os imóveis, que, escapadas da necessidade do registro, não adquiriam sequela, nem oponibilidade contra terceiros.

              Vai encontrar-se ainda o termo ônus reais no Decreto 4.857/1939 (de 9-11) –ou seja, no Regulamento registral de 1939–, lendo-se em seu art. 293: “ O registro, enquanto não for cancelado, produzirá todos os seus efeitos legais, ainda que por outra maneira se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido. Parágrafo único. Aos terceiros prejudicados, será lícito, em juízo, fazer, não obstante, prova da extinção dos ônus reais e promover a efetivação do cancelamento”.

              Ponto relevante a considerar, a essa altura, está em que na doutrina (por exemplo, a de Serpa Lopes), ao comentar-se esse dispositivo do Regulamento de 1939, fala-se já em “ônus hipotecário” (consulte-se item 769, in fine, do Tratado dos registros públicos), de modo que com isto pode avistar-se uma dada expansão do uso do termo ônus real que, com a Lei 1.237, não compreendia a hipoteca.

              A Lei brasileira 6.015, de 1973, já no item 2º do inciso II de seu art. 176, menciona a extinção dos ônus e direitos reais (ou seja, leia-se: dos ônus reais e dos direitos reais; com efeito, se o adjetivo reais não se referisse também aos ônus, o texto da lei deveria ser “extinção dos ônus e dos direitos reais”). À frente, no art. 253 dessa lei, encontra-se nova menção: “Ao terceiro prejudicado é lícito, em juízo, fazer prova da extinção dos ônus reais, e promover o cancelamento do seu registro”; também no art. 279: “O imóvel sujeito a hipoteca ou ônus real não será admitido a registro sem consentimento expresso do credor hipotecário ou da pessoa em favor de quem se tenha instituído o ônus”, e, além disso, no art. 292: “É vedado aos Tabeliães e aos Oficiais de Registro de Imóveis, sob pena de responsabilidade, lavrar ou registrar escritura ou escritos particulares autorizados por lei, que tenham por objeto imóvel hipotecado a entidade do Sistema Financeiro da Habitação, ou direitos a eles relativos, sem que conste dos mesmos, expressamente, a menção ao ônus real e ao credor, bem como a comunicação ao credor, necessariamente feita pelo alienante, com antecedência de, no mínimo 30 (trinta) dias.”

              Em outros dispositivos da mesma lei há referência a esses ônus, sem embora o vocábulo se acompanhe do adjetivo: assim, “se na certidão constar ônus, o oficial fará a matrícula, e, logo em seguida ao registro, averbará a existência do ônus, sua natureza e valor, certificando o fato no título que devolver à parte, o que o correrá, também, quando o ônus estiver lançado no próprio cartório” (art. 230; vidē ainda § 1º do art. 235).

              Valeu-se Afrânio de Carvalho de uma aproximação causal dos ônus reais, indicando-lhes os títulos constitutivos (in Registro de imóveis, 2.ed.; Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 81-2): (i) o bem de família (que o autor considera matéria controversa: p. 87); (ii) as hipotecas legais, judiciais e convencionais; (iii) os contratos de locação de imóveis, nos quais haja cláusula de vigência em caso de alienação dos prédios (o mesmo autor refere-se à locação-ônus: p. 90); (iv) o penhor de máquinas e de aparelhos utilizados na indústria, instalados e em funcionamento, com seus pertences ou sem eles; (v) as servidões em geral; (vi) o usufruto sobre imóveis; (vii) o uso constituído sobre prédio; (viii)  as rendas que se constituam sobre imóveis; (ix) a habitação, desde que não resulte do direito de família; (x) o compromisso de compra e venda. de cessão desse mesmo compromisso e de promessa de cessão, com ou sem cláusula de arrependimento, que tenham por objeto imóvel não loteado, não importando que o preço aquisitivo tenha sido pago à vista ou a prazo, de uma só vez ou em prestações; (xi) a enfiteuse; (xii) a anticrese; (xiii) os contratos de penhor rural.

              Essa lista –que não pode considerar-se exaustiva, quando menos em atenção à possibilidade da superveniência de preceitos legais institutivos de outros ônus (p.ex., pense-se no possível caráter real da multipropriedade)– dá suficiente espeque, entretanto, para que o direito brasileiro se beneficie – de algum modo– da antiga ideia de propriedade imperfeita que se acolhia, em Portugal, no antigo Código de Seabra (art. 2.189º; para o rol dos ônus reais segundo essa legislação portuguesa, cf. § 2º do art. 949º).

              Em resumo, os ônus reais, no Brasil, contemplam quer os direitos de fruição, quer as garantias reais, e ainda as discutíveis situações do bem de família e da locação-ônus. De Plácido e Silva tratou de conceituá-los por encargos ou obrigações que pesam diretamente sobre a propriedade, limitando-lhe a fruição e a disposição, ou ainda destinando-se a garantir “outras obrigações” (Vocabulário jurídico, verbete ônus reais). Caberia disputar se o jurista paranaense integrou no plexo dos ônus reais as obrigações propter rem, mas isto é assunto para além deste capítulo.

              O que aqui deve salientar-se é a necessidade de que as certidões registrais retratem os ônus todos de que, levados, pois, à inscrição predial, tenha constância registral, ainda que possa pender dúvida sobre a natureza jurídica do fato inscrito (tal se dá, p.ex., com o tema do bem de família e com o da locação do imóvel com cláusula de vigência em caso de sua alienação). Ainda que a existência desses ônus não impeça, de maneira absoluta, o registro da incorporação (cf. § 5º do art. 32 da Lei 4.591), deve prestigiar-se o interesse da ciência e da consciência dos futuros adquirentes: “A certidão de ônus reais sobre o imóvel objeto da incorporação é fundamental, para que o pretendente à aquisição tenha conhecimento de sua real situação e possa avaliar os riscos que assumirá ao adquirir a unidade imobiliária” (Melhim Chalhub, o.c., p. 63).  Também Flauzilino Araújo dos Santos, realçando a importância da indicação desses ônus, chega a dizer, com apurada prudência, que, de ser promovida, nessas condições, a inscrição do empreendimento, cabe, no texto desse registro e das certidões que lhe correspondam, o destaque das “devidas ressalvas”, mediante “a expressa menção desses ônus e da extensão de seu encargos” (o.c., p. 223).