Sobre o registro das incorporações, instituições e convenções de condomínio (sqq. -décima parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 245)

                             Des. Ricardo Dip

             908. A lista do art. 32 da Lei 4.591, de 1964, prossegue com a exigência, para o registro da incorporação, de que o solicitante apresente o “histórico dos títulos de propriedade do imóvel, abrangendo os últimos 20 anos, acompanhado de certidão dos respectivos registros” (letra c).

Já se indicou a observação de Ademar Fioranelli no sentido de que a exigência de uma história dos títulos dominiais relativos ao imóvel parece excessiva, porque se reclama acompanhada da certidão de seus correspondentes registros. Num sistema formal, assim o brasileiro, em que a aquisição da propriedade imobiliária por ato inter vivos depende, necessariamente, de registro do título aquisitivo, não se avista o interesse em lançar-se de maneira especial um capítulo histórico daquilo já historiado pelas certidões do registro. Poderia objetar-se que a aquisição causa mortis não demanda, salvo para fins de disponibilidade, a inscrição predial, mas ainda aqui deve ter-se em conta que o mais recente dos títulos aquisitivos há de ter sido apresentado (alínea a do art. 32 da Lei 4.591), de tal sorte que não poderia já faltar o registro de uma aquisição mortis causa na cadeia consecutiva dos títulos inscritos.

Ainda que a Ademar Fioranelli –noblesse oblige– não faltasse a elegância de salvar a exigência legal mediante a referência a alguma cláusula no título que não constasse de seu registro (o.c., p. 570), o fato é que a Lei 4.591 não impõe que os títulos sejam apresentados, senão que sejam historiados, e saber de onde vêm e, assim, permitir consultar-lhes na origem o teor, isto já o indica seu próprio registro, pois, como disse Caio Mário da Silva Pereira: “…o histórico se faz pelo registro e com as certidões” (o.c., p. 263). No mesmo sentido, Melhim Chalhub, depois de observar que o histórico não precisa textualizar-se em separado do memorial, diz que a elaboração desse histórico “se baseia nas certidões expedidas pelo Oficial do Registro de Imóveis sobre a propriedade” (o.c., p. 64). O mesmo Ademar Fioranelli remata ser “desnecessário o histórico, já que este apenas relata a sequência dos títulos de domínio, cuja situação físico-jurídica está refletida na certidão de filiação” (o.c., p 572).

Abstraída a necessidade de sua apresentação em repetido acréscimo ao constante das certidões registrais, as  finalidades desse histórico parecem ser, ao menos, três: (i) a de ensejar a eventuais interessados na aquisição de unidades edilícias autônomas sindicar os sucessivos títulos aquisitivos, para melhor assegurar-se do êxito do empreendimento; (ii) a de renovar ao oficial do registro a oportunidade de aferir o encadeamento das aquisições do imóvel (assim, Flauzilino Araújo dos Santos, o.c., p. 226), o que, assinale-se, ostenta relevância quando se trata de prédio submetido a mudança de competência circunscritiva dos cartórios de imóveis, de maneira que o registrador terá, então, a tarefa de verificar a consecutividade das aquisições anteriores à linha filiatória do prédio constante de seu próprio ofício imobiliário; (iii) a de permitir reforçar a titularidade formal (legitimação tabular) com a notícia de sua regular consecutividade ao largo do prazo da prescrição aquisitiva.

Quanto a este último fim da apresentação do histórico dos títulos, a Lei 4.591, como visto, exigiu que abrangesse o prazo vintenário, porque era este, no Código civil brasileiro de 1916, o tempo máximo da usucapião (art. 550). Caio Mário acenara já a que, reduzido fosse esse prazo do Código civil, deveria a Lei 4.591 adaptar-se a essa redução (o.c., p. 263). Deu-se, com efeito, que o sobrevindo Código civil nacional, de 2002, alterou esse prazo, assinando-o em 15 anos (art. 1.238). Por isso, Melhim Chalhub sustenta que esse novo prazo é o que há de prevalecer, desde a vigência do Código, para a observância do disposto na letra c do art. 32 da Lei 4.591 (o.c., p. 64).

Todavia, em contrário, Flauzilino Araújo dos Santos argumenta, invocando a norma do art. 2.028 do Código civil de 2002, que se recomenda “a manutenção da apresentação do histórico de 20 anos” (o.c., p. 226; não diversamente: Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, o.c., vol. 5, tomo 2, p. 2.448). Parece razoável esse entendimento, por tudo quanto se lê no referido art. 2.028 do Código civil: “Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”.

Observe-se, contudo, a transitoriedade dessa previsão do art. 2.028 do Código –considerado o novo prazo a partir de 11 de janeiro de 2003 (por força do art. 2.044 desse mesmo Código)–, de maneira que já a contar de março de 2013 não caberia mais exigir o histórico e a certidão vintenária, mas a filiação relativa a 15 anos da vida jurídica do imóvel.

            909. É requisito do registro da incorporação, na sequência do elenco previsto no art. 32 da Lei brasileira 4.591, de 1964, o “projeto de construção devidamente aprovado pelas autoridades competentes” (alínea d).

No segmento que se designa direito do planejamento (ou planeamento) territorial –e que corresponde ao aspecto jurídico da mais vasta disciplina que é o urbanismo–,  o tema restrito do urbanismo das cidades adquiriu maior relevo com o vulto da evasão rural (que comporta um urbanismo próprio) e o consequente afluxo massivo e concentracionário nas cidades, que, em alguns casos, parecem ser já cidades apopléticas, necrópolis, exigindo-se, pois,  que, sem embargo do reconhecimento do direito de construir, a administração intervenha para prevenir e, quando isto se justificar, corrigir o excesso privatístico,  caos urbano ou anarquia na ocupação do solo: “…quien se construye su casa no puede hacerlo como se estuviese en una isla solitaria o en medio del campo” (Patricio Randle, Teoría de la ciudad, p. 32). Gaston Bardet observou que o urbanismo decimonômico reduzia a três os problemas da cidade: tráfego, higiene e estética; mas, a partir já da primeira metade do século XX, além desses problemas, outros mais emergiram para a consideração dos urbanistas: os problemas de conforto, os sociais, os econômicos, os intelectuais e os espirituais (O urbanismo, 2.ed., p. 37 et sqq.), a que deve agregar-se o problema da segurança ante a criminalidade.

Refere-se a lei a “projeto de construção”; o vocábulo «construção» pode não apenas entender-se como atividade em curso –o trâmite ou itinerário de algo a construir-se–, mas também como obra já concluída. As ideias  de construção e de construir não se limitam à obra e à atividade material, nem a um resultado necessariamente positivo: uma desconstrução material, por exemplo, pode ser conveniente para preparar um terreno em vista de seu melhor aproveitamento posterior (assim o observou Hely Lopes Meirelles, em Direito de construir, 3.ed., p. 350). Por isso,  construção e construir são noções genéricas, ao passo em que edificação e edificar têm acepções específicas: “edificação –diz o mesmo Hely Lopes Meirelles– é a obra destinada a habitação, trabalho, culto, ensino ou recreação” (o.c., p. 350).

Refere-se a Lei 4.591 ao «projeto de construção», que, distinguindo-se da planta e do plano (ou programação) de construção, pode conceituar-se, ainda uma vez aqui aproveitada a lição de Hely Lopes Meirelles, “o conjunto de estudos, cálculos e desenhos necessários à expressão técnica e artística da obra a ser executada”. Abrange esse projeto construtivo (i) estudos preliminares (p.ex., a sondagem do terreno), (ii) cálculos estruturais, (iii) desenhos (plantas: “representação gráfica e em escala de um corte ou de uma vista da construção, ou parte dela”; cortes, fachadas), (iv) memorial descritivo com a especificação da mão-de-obra e do material que se pretende usar na obra, (v) orçamentos e (vi) cronogramas (o.c., p. 350).  Dessa maneira, o projeto de construção é, em parte, manifestação técnica e, noutra parte, expressão estética, estando a técnica e arte postas em conjunção para criar “novos caminhos arquitetônicos” (Ernst Neufert, Arte de projetar em arquitetura, 5.ed., p. 31).

É atribuição de cada município a polícia local das construções, visando a, de um lado, salvaguardar o direito de construir, mas, de outro lado, garantir, não menos, os direitos vicinais e a observância dos regulamentos edilícios (cf. art. 1.299 do Código civil de 2002).

Prosseguiremos na análise deste requisito.