(da série Registros sobre Registros, n. 237)
Des. Ricardo Dip
- 894. Tal se indicou, a normativa brasileira de regência das incorporações imobiliárias –a Lei 4.591/1964 (de 16-12), sobretudo– preceitua-lhes o registro, previsão que se reforça com a estatuição de sanções específicas (cf. art. 64 e, com natureza penal –contravenção relativa à economia popular, art. 66; acrescente-se a previsão do § 7º do art. 32 da Lei, reportando-se à responsabilidade civil e criminal do registrador de imóveis, “se efetuar o arquivamento de documentação contraveniente à lei ou der certidão sem o arquivamento de todos os documentos exigidos”, norma penal que J. Nascimento Franco reputou in albis, deficiente quanto ao capítulo da sanção, por isso que não estatuída, ao reverso do que se deu nos arts. 65 e 66 da Lei, dispositivos, entretanto, que não se referem ao registrador imobiliário –cf. “Contribuição do oficial do registro de imóveis para o aperfeiçoamento da incorporação imobiliária”, inAA., Doutrinas essenciais -Direito registral, org. Ricardo Dip e Sérgio Jacomino, vol. IV, p. 391; houve ainda uma reiteração desse preceito no Decreto 55.815, de 8-3-1965, decreto esse que instituíra normas para a escrituração dos registros prevista na referida Lei 4.591,–§ 7º do art. 1º; o Decreto 55.815 já foi revogado pelo Decreto 11, de 18-1-1991, conforme consta de seu anexo IV).
Diz bem Melhim Namen Chalhub que a mera celebração contratual da incorporação imobiliária “não é suficiente para dar-lhe validade e eficácia perante terceiros”, pois, prossegue: “Pelo contrato de incorporação apenas se constitui a obrigação do incorporador de transmitir a propriedade da fração ideal e acessões, mas essa transmissão só se efetiva mediante registro”.
Pende neste passo interessante discussão acerca da obrigatoriedade do registro da incorporação quando, à raiz, não haja atividade empresarial, ou seja, na hipótese de não existir oferta a alienações com anterioridade à edificação concluída (vidē, a propósito, a combativa palestra ministrada pelo saudoso jurista Elvino Silva Filho, no XIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, em Foz do Iguaçu, no mês de outubro de 2007 –“Da obrigatoriedade do registro da incorporação do condomínio”, in VV.AA., Doutrinas essenciais -Direito registral, cit., vol. IV, p. 313 et sqq.). Sem embargo do fulgor dos argumentos desenvolvidos por Elvino Silva –como era, de resto, de seu costume–, parecem melhores as razões opostas, a tanto já se extraindo indicações do art. 30 da Lei 4.591, de 1964, que estende a condição de incorporador “aos proprietários e titulares de direitos aquisitivos que contratem a construção de edifícios que se destinem a constituição em condomínio sempre que iniciarem as alienações antes da conclusão das obras” (o itálico não é do original). De onde vem que, não se dando começo a alienações antes da conclusão das obras, haja de entender-se não haver a figura (neste caso, expansiva) do incorporador, sendo este, de maneira estrita, na letra do art. 29 da mesma lei, “a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial” (ainda uma vez o destaque não é do original). Nesse sentido, lê-se na doutrina de Caio Mário da Silva Pereira, para quem todo aquele que aliene as unidades autônomas “depois de estar o prédio terminado (…) não procede como incorporador”, e, portanto, “a ele não se aplica a Lei n. 4.591/64, na parte relativa ao incorporador, sendo como é um vendedor” (Condomínio e incorporações, 4.ed., p. 249). Parece ser esse também, por igual, o entendimento de Flauzilino Araújo dos Santos, ao dizer que, nos termos da Lei 4.591, o compromisso ou a efetividade da “venda de frações ideais do terreno vinculadas a futuras unidades autônomas” caracteriza, desde logo, “contrato de incorporação imobiliária, sujeito daí em diante, portanto, às prescrições dessa Lei Especial de Regência” (Condomínios e incorporações no registro de imóveis, p. 208).
Ad summam, é por não existir, inconfundível com a de construtor, a atividade empresarial de incorporação antes de ato algum de alienação de partes ideais do terreno ligadas a ulteriores unidades autônomas, que não cabe cogitar do registro de uma inexistente incorporação.
- 895. Impõe a Lei 4.591, tal se verifica de seu art. 32, que o incorporador somente possa negociar acerca das unidades autônomas depois do arquivamento (sic) de um rol de documentos no cartório de registro de imóveis, observando-se que esse rol não é exauriente (p.ex., veja-se que o § 3º do art. 67 dessa mesma lei se reporta ao contrato-padrão que, por força de dever entregar-se, em cópia, aos adquirentes, há de arquivar-se, pois, no registro predial).
Sublinhe-se que, sendo a Lei 4.591 anterior à atual normativa dos registros públicos, a noção de arquivamento dos títulos (em sentido formal) não conflita com a de registro dos títulos (em sentido material), harmonizando-se com a ideia de que aqueles títulos sejam conservados no ofício imobiliário, sem prejuízo do remate conclusivo que, neles fundado, permite a lavratura do registro correspondente.
- 896. Tratemos, ainda que de modo bastante breve e na trilha desse art. 32, do quanto, para o registro da incorporação, exige a normativa de regência,
À partida, cabe uma referência ao memorial de incorporação, de que disse Mario Pazutti Mezzari ser “o documento basilar para o registro da incorporação imobiliária” (Condomínio e incorporação no registro de imóveis, 2.ed., p. 141). Esse memorial, em palavras de Melhim Chalhub, é “o ato jurídico básico do negócio jurídico da incorporação imobiliária”; é um dossier, prossegue Chalhub, “que contém todas as informações e todos os documentos que descrevem e caracterizam o empreendimento planejado, tais como o título de propriedade o terreno, cópia do projeto aprovado pelas autoridades, o orçamento da obra e a especificação dos materiais, entre outros” (Incorporação imobiliária, 4.ed., p. 53).
Bem observou Mario Mezzari que o art. 32 da Lei 4.591 faz referência específica ao memorial de incorporação (alínea g), sem que se tratasse, no entanto, de um documento geral; com efeito, esse art. 32 faz menção ao “memorial descritivo das especificações da obra projetada, segundo modelo a que se refere o inciso IV, do art. 53”. Foi a praxis cartorária, disse Mezzari, e o sendo jurídico dos incorporadores que passaram a definir –em rigor, a expandir– o conteúdo desse memorial, nele incluindo, (i) o nome e a qualificação do titular dominial do terreno, (ii) o nome e a qualificação do incorporador, (iii) a descrição do terreno e a indicação do registro correspondente, e (iv) a descrição das unidades autônomas (o.c., p. 142-9).
Dessa maneira, não estaria longe da verdade pensar-se em três distintas acepções de memorial de incorporação: num primeiro sentido, esse memorial corresponde à ideia de um caderno ou dossier –como o referiu Melhim Chalhub–, encartando os títulos todos elencados no art. 32 da Lei 4.591 (“Há, no memorial –disse Chalhub–, documentos de natureza jurídica, técnica, financeira e empresarial, que se destinam a dar à pessoa interessada na aquisição condições de conhecer com exatidão o objeto que pretende comprar, bem como avaliar o risco da aquisição” –o.c., p. 55; não diveramente, do mesmo autor, “Memorial de incorporação”, in VV.AA., Doutrinas essenciais -Direito registral, cit., vol. IV, p. 534); num segundo sentido, tomando-se como documento de caráter geral, de que constem informações até mesmo faltantes nos títulos apresentados de consonância com as exigências do art. 32 da Lei 4.591 (assim, Mario Mezzari, o.c., p. 142, in fine); e, numa terceira acepção, exatamente a prevista, de maneira pontual, na letra g do art. 32 dessa mesma Lei 4.591/1964: “memorial descritivo das especificações da obra projetada, segundo modelo a que se refere o inciso IV, do art. 53, desta Lei” (é a esse modo que se dedica Flauzilino Araújo dos Santos ao examinar o tema do memorial: cf. o.c., p. 233).