Sobre o registro das debêntures

(da série Registros sobre Registros, n. 235) 

                               Des. Ricardo Dip

              892. No texto da Lei brasileira 6.015, de 1973, lia-se caber o registro stricto sensu “dos empréstimos por obrigações ao portador ou debêntures, inclusive as conversíveis em ações” (item do inc. I do art. 167; mais uma vez, ressente-se o texto da má posição do advérbio “inclusive”, que, na linguagem culta –esperada nas leis– deveria pospor-se à palavra “ações”). Essa previsão e a do inciso I do art. 178 da mesma Lei 6.015, que dispunha ser inscritível no livro 3 (registro auxiliar) do ofício imobiliário “a emissão de debêntures, sem prejuízo do registro eventual e definitivo, na matrícula do imóvel, da hipoteca, anticrese ou penhor que abonarem especialmente tais emissões, firmando-se pela ordem do registro a prioridade entre as séries de obrigações emitidas pela sociedade”, ambos esses dispositivos, segundo solidado entendimento doutrinário, revogaram-se implicitamente com a vigência da Lei 10.303, de 31 de outubro de 2001.

              Nada obstante, considerando que as debêntures podem acompanhar-se de garantias reais –imobiliárias, inclusive (hipoteca e anticrese)–, elas ainda podem acessar o registro imobiliário, não mais para nele inscrever-se sua emissão (o que é, agora, atraído para o registro do comércio), mas para o fim de levar ao ofício predial as garantias reais referentes a imóveis. Daí a conveniência de aqui tratar um tanto do tema das debêntures.

              Substantivo plural de debêntur (alistado já no Volp -Vocabulário oficial da língua portuguesa), as debêntures constituem uma espécie entre os valores mobiliários. Veio-nos a palavra, assim o indica Antônio Geraldo da Cunha (Dicionário etimológico Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982, p. 240), diretamente do inglês debenture (séc. XV -cf. o verbete correspondente in Longman Dictionary of Contemporary English) e, de modo remoto, do verbo latino debeo (infinitivo debere), mais exatamente da terceira pessoa do plural do indicativo passivo desse verbo (dēbentur).

              A noção de valor mobiliário –gênero das debêntures– corresponde à de instrumento para a captação de recursos financeiros em favor de companhias, de sorte que apenas as sociedades anônimas podem emitir as debêntures. Trata-se, em suma, segundo frequente entendimento doutrinário, de uma operação de empréstimo, de mútuo (cf., brevitatis studio, Fábio Ulhoa Coelho, Curso de direito comercial, 2011, vol. 2, p. 164), muito se acercando a debêntures da noção de título de crédito, ainda que, não lhe sendo exigível a cartularidade (que pode, per accidens, existir com a emissão de certificados), pareça distinguir-se: “A condição de acionista, debenturista ou parte beneficiária pode ser provada, perante a sociedade, por muitos meios, independentemente da exibição do certificado…” (Ulhoa Coelho).

              Sua admissão no direito brasileiro parece datar da Lei 3.150/1882 (de 4-11), cujo art. 32 dispunha: “É permitido às sociedades anônimas contrair empréstimo de dinheiro por meio de emissão de obrigações ao portador”, com que se removeu a proibição de emitirem-se obrigações ao portador, assim constava da Lei 1.083/1860 (de 22-8): “Nenhum dos Bancos criados por Decretos do Poder Executivo poderá emitir ou manter na circulação notas, bilhetes, e em geral, escritos que contenham promessa ou obrigação de valor recebido em deposito, ou de pagamento ao portador, de quantia inferior a cinquenta mil réis na Corte e Província do Rio de Janeiro, e a vinte cinco mil réis nas outras Províncias” (§ 2º do art. 1º, a ênfase gráfica  não é do original). Disciplinou-se a matéria do art. 32 da referida Lei 3.150, de 1882, logo no ano seguinte, com o Decreto 177-A (de 15-8-1893), em que a palavra debêntures aparece então pela primeira vez de modo expresso em nossa normativa, assim, p.ex., na ementa desse decreto –que “regula a emissão de empréstimos em obrigações ao portador (debêntures) das companhias ou sociedades anônimas”– e em seu art. 1º: “As companhias ou sociedades anônimas poderão emitir empréstimos em obrigações ao portador (debêntures), de conformidade com o disposto nesta lei”.

              Nosso Regulamento registral de 1939 –o Decreto 4.857– instituiu um livro (n. 5) para o registro da emissão de debêntures (art. 182), prevendo em seu art. 187: “No livro n. 5 -Emissão de debêntures- dividido em colunas correspondentes aos requisitos exigidos, além da de averbações, serão inscritas as emissões de debêntures, sem prejuízo da inscrição eventual e definitiva, no livro n. 2, das hipotecas que abonarem, especialmente, ditas emissões”. Consagrava-se, pois, a inscrição de um valor mobiliário –a debêntur– no registro imobiliário, talvez em razão de esse título poder acompanhar-se de garantias reais, além da garantia pessoal da fiança, e, entre aquelas (penhor, hipoteca, anticrese), duas incidentes sobre imóveis.

              Advindo, na segunda metade do século XX, a Lei brasileira do mercado de capitais (Lei 4.728, de 14-7-1965), nela se versaram as debêntures, entre outros dispositivos, em seu art. 26 (“As sociedades por ações poderão emitir debêntures, ou obrigações ao portador ou nominativas endossáveis, com cláusula de correção monetária…”) e, sobretudo, no caput e nos nove parágrafos do art. 40 da mesma Lei. Uma década à frente, a Lei 6.404/1976 (de 15-12) –a Lei das sociedades por ações– tratou largamente das debêntures (arts. 52 a 74), prescrevendo no § 4º de seu art. 62: “Os registros de imóveis manterão livro especial para inscrição das emissões de debêntures, no qual serão anotadas as condições essenciais de cada emissão”. Essa previsão, no entanto, foi alterada com a já referida Lei 10.303, de 2001, passando a dispor: “Os registros do comércio manterão livro especial para inscrição das emissões de debêntures, no qual serão anotadas as condições essenciais de cada emissão” (o itálico não é do original).

              Essa mudança implicitou –assim já o deixamos dito– a revogação do preceito do inciso I do art. 178 da Lei 6.015, de 1973.

              Vale dizer, em palavras de Ralpho Valdo de Barros Monteiro Filho: “…com o advento da Lei nº 10.303/01, pode-se afirmar que estão revogados tacitamente os dispositivos da Lei de Registros Públicos concernentes ao registro da emissão das debêntures”; prossegue o mesmo autor: “Frise-se, por oportuno, que está em pleno vigor o seu regime no que diz respeito ao registro específico das eventuais garantias reais instituídas com a emissão das debêntures” (VV.AA., coordenação de José Manoel de Arruda Alvim, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambler, Lei de registros públicos comentada, 2.014, p. 649). Na mesma obra, lê-se este entendimento de Francisco José Rezende dos Santos: “Hoje em dia a debêntures não são mais registradas no Registro de Imóveis. Ocorreu a derrogação tácita da Lei nº 6.015/1973, nos arts. 167, I, 16, e 178, I, por absoluta incompatibilidade com a nova legislação que regulamenta a matéria pela Lei nº 10.303/2001, que transferiu a atribuição do ato para outro órgão, o Registro Público de Empresas Mercantis (Juntas Comerciais) da sede da emissora, a qual manterá livro próprio para esse fim” (p. 964). Também assim é o que sustentam Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho (Direito registral imobiliário, vol. II, p. 473) e, por igual, Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari: “(…) atualmente, o Registro de Imóveis é responsável somente pela constituição das garantias reais relativas às debêntures (junto à matrícula do imóvel afetado pelo ônus real), enquanto o arquivamento da escritura de emissão é realizado no registro de comércio competente” (Tratado notarial e registral, vol. 5, tomo 2, p. 2.137).