Sobre a enfiteuse (segunda parte)

Sobre a enfiteuse (sequitur)

             (da série Registros sobre registros n. 223)

                                                        Des. Ricardo Dip

  1. 874. Descoberto o Brasil no ano de 1500, suas terras passaram, por direito de invenção, ao domínio de seu descobridor, Portugal, que, arriscado a perdê-las para outros povos da Europa geográfica (não nos esqueçamos, neste passo, do que foram as invasões francesas e a holandesa), introduziu no território brasileiro o sistema político das capitanias hereditárias, assim nomeadas porque seus favorecidos, os donatários, exerciam também funções próprias de um capitão ou chefe superior: “A expressão capitania era, portanto, sinônimo de chefia, superintendência, governança” (César Trípoli, História do direito brasileiro –São Paulo: Revista dos Tribunais, 1936, vol. I, p. 85).

              Concedidas por meio de títulos designados cartas de doação, e denominando-se também capitanias donatárias, o fato é que essas capitanias estavam gravadas por uma dada lei mental de revogabilidade das “doações” tanto isso fosse do interesse da Coroa portuguesa (cf., brevitatis causa, Waldemar Ferreira, no primeiro tomo da História do direito brasileiro –São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1951, item 16, p. 36 et sqq.). Com essa reserva mental, a “doação” não ocorria verdadeiramente (salvo quanto a algumas porções de terra que se indicassem expressamente nas cartas de doação), e a expressão capitania donatária servia efetivamente para indicar que as terras se submetiam à “jurisdição exclusiva dos donatários” (Trípoli, ibidem).

              Dessa maneira, quer em sua integralidade, quer em suas partes (as sesmarias), as terras nesse sistema de capitanias hereditárias eram apenas concedidas para fins de cultivo e de edificação de moradia. Era, enfim, só (ou, no limite, mais) de enfiteuse do que de transferência de domínio pleno que se estava a tratar:

“Caso não atingissem a finalidade prevista, voltavam ao domínio da Coroa, quando então eram consideradas devolutas.

Convém esclarecer que tanto as terras das sesmarias como também aquelas que retornavam ao domínio da Metrópole foram objeto de contrato de enfiteuse.

Concluiu-se, assim, que tanto os terrenos de domínio público como aqueles de domínio particular serviram de base para contrato de enfiteuse” (Edgar Carlos de Amorim, Teoria e prática da enfiteuse, apud Arnaldo Rizzardo, Direito das coisas –8.ed., Rio de Janeiro: Gen : Forense, 2016, p. 860).

              De modo mais incisivo, disse César Trípoli:

“Atendendo ao objeto da doação das capitanias feita pelo soberano aos donatários, força é reconhecer que esse ato real não constituía verdadeira doação, no sentido jurídico, porquanto, do exame conjunto das cláusulas outorgadas no respectivo título, aos donatários era apenas concedido o benefício, o usufruto das terras das capitanias, e não a propriedade territorial”.

              E prossegue Trípoli:

“Em suma, pode dizer-se que, em relação às capitanias, tratava-se mais de uma concessão do que de uma doação, ou, quando muito, de um contrato de enfiteuse, em que todos os encargos ficavam onerando o concessionário ou enfiteuta: este, por sua vez, tinha direito a todos os rendimentos, com exceção apenas dos foros, prerrogativas e privilégios econômicos que o soberano reservara para si” (o.c., p. 86).

              Bem se vê, pois, a importância que o instituto da enfiteuse adquiriu no âmbito do direito português e, por meio dele, para o direito brasileiro: “A enfiteuse do direito romano passou para as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manoelinas e Filipinas)…”, e daí “esse direito enfitêutico passou para o Brasil independente, com a legislação portuguesa em geral, adotada pela lei de 23 de outubro de 1823, decretada pela nossa primeira Assembleia Constituinte, que foi dissolvida no mês seguinte” (Vieira Ferreira, “A enfiteuse em nosso direito”, in Doutrinas essenciais -Direito registral –São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, vol. V, p. 978 e 980).

              Muitas das críticas dirigidas contra o instituto desprezam-lhe a importância ao largo da história, não apenas nacional, valendo aqui recordar o comentário de Clóvis Beviláqua: “O Código Civil francês não trata da enfiteuse, mas a jurisprudência a restabeleceu, contra a opinião de alguns civilistas dos mais notáveis, e, afinal, a lei de 25 de junho de 1902 a regulou, como direito temporário. O alemão também não enumera o aforamento entre os direitos reais; porém ele existe na legislação dos Estados…” (Código civil dos Estados Unidos do Brasil, comentário ao art. 678). Cabe, em  remate do ponto, a observação de Vieira Ferreira no sentido de que, no Brasil, “onde não faltam latifúndios”, não se vê motivo razoável “para se tolher a liberdade contratual  na procura e oferta de terras e rendas, se aos interessados aprouver recorrerem à enfiteuse” (p. 987). O frequente refúgio em lugares comuns faz com que se atire à enfiteuse a pecha de ser algo “medieval” –como se o não fossem também a compra e venda, a locação, o comodato, etc. (trata-se aqui de paráfrase de argumento adotado por Vieira Ferreira, que alude à tachação vã de a enfiteuse ser “feudal”).

  1. 875. Coube ao Código civil de 1916 regular a enfiteuse, no Brasil, de modo sistemático, articulando o tema ao largo de 17 artigos (arts. 678 et sqq.), a maior parte dos quais agasalhava o projeto de Clóvis Beviláqua, somente se adotando quatro artigos propostos pela Comissão do Governo, presidida pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Epitácio Pessoa (cf. Vieira Ferreira, c.).

              Reitere-se que essa normativa é ainda a aplicável, nos termos que dispõe o caput do art. 2.038 do Código civil brasileiro de 2002.

              A enfiteuse, no sistema do Código de 1916, é alistada entre os direitos reais –é, aliás, o primeiro que deles ali se elenca (inc. I do art. 674)–, e bem por isso que é direito real acompanha o domínio (“Os direitos reais passam com o imóvel para o domínio do comprador, adquirente” -art. 677), e, apontando a lei seus nomes de aforamento ou emprazamento, define-se no art. 678: o direito que se efetiva “quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui à outro o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável”.

              Para logo, tem-se que, no sistema adotado pelo Código brasileiro de 1916, a enfiteuse tanto pode instituir-se por ato entre vivos –com o contrato enfitêutico–, quanto por disposição mortis causa. Tratando-se de contrato (título inter vivos), ensinou Clóvis Beviláqua poderem as partes, no exercício de autonomia privada, incluir cláusulas peculiares, contanto que “não alterem a substância do instituto”. Quanto à forma, exige o Código escritura pública, sempre que o valor do imóvel exceda o limite normativo (então previsto no inc. II do art. 134), veículo de inscrição constitutiva no registro imobiliário, como já previsto, para o gênero todo dos direitos reais instituídos inter vivos, no art. 676 do mesmo Código: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos só se adquirem depois da transcrição ou da inscrição, no registro de imóveis, dos referidos títulos (arts. 530, n I, e 856), salvo os casos expressos neste Código”. Saliente-se que os contratos enfitêuticos relativos a bens da União, lavrados em livro próprio (nos termos do Decreto-lei 9.760, de 1946), embora não demandem escritura pública, devem inscrever-se no ofício imobiliário competente.

              Controversa a possibilidade de a enfiteuse adquirir-se também por meio de usucapião, parece que em seu favor se inclina a maior parte da doutrina brasileira, como já era o entendimento do Conselheiro Lafayette, de Clóvis Beviláqua, Carvalho Santos, Lacerda de Almeida, entre outros, e a que concorreram decisões do STF (sob a relação dos Ministros Rodrigues Alckmin e Moreira Alves), tal o fez ver Benedito Silvério Ribeiro, que também reconhece a viabilidade da prescrição aquisitiva do aforamento (Tratado de usucapião. São Paulo: Saraiva, 1992, vol. I, p. 410-413).

              Concluiremos.