(da série Registros sobre Registros, n. 372)
Des. Ricardo Dip
1.135. Chegando já ao direito atualmente em vigor no Brasil, continuemos a examinar o tema do registro da legitimação de posse e do registro de sua conversão em propriedade.
Parece mais pedagógico apreciemos o assunto de maneira dividida, nada obstante a uniformidade de boa parte de sua matéria, tal que cuidemos primeiro da questão quanto às terras devolutas e, depois, versemos o assunto no que respeita à regularização fundiária urbana.
Pois bem. Quatro fontes normativas devem, sobretudo, considerar-se para o primeiro ponto: a saber, o Estatuto de Terra (Lei 4.504, de 30-11-1964), a Lei 6.383/1976 (de 7-12), o Decreto-lei 9.760/1946 (de 5-12) e a Instrução normativa 80 (de 13-5-2014), instrução essa editada pelo Presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
Antes de prosseguir, cabe sinalizar que para as considerações que seguem muito havemos de tributar o que se recolhe nas páginas do Tratado notarial e registral de Kümpel e Carla Ferrari.
1.136. De consonância com o que se lê no Estatuto da Terra, é a todos assegurada «a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social» (art. 2º), tendo-se como requisitos da «posse agrária» (cf. arts. 3º e 7º da já mencionada Instrução normativa 80, de 2014)
(i) deva essa posse ter por objeto terras devolutas federais (cf. art. 11: «O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária fica investido de poderes de representação da União, para promover a discriminação das terras devolutas federais, restabelecida a instância administrativa disciplinada pelo Decreto-Lei n. 9.760, de 5 de setembro de 1946, e com autoridade para reconhecer as posses legítimas manifestadas através de cultura efetiva e morada habitual, bem como para incorporar ao patrimônio público as terras devolutas federais ilegalmente ocupadas e as que se encontrarem desocupadas»;
(ii) terras essas cuja superfície não ultrapasse determinada dimensão (vejam-se os arts. 4º, inc. III, 97, inc. II, e 98 do Estatuto, e ainda o art. 29 da Lei 6.383);
(iii) terras nas quais tenha o ocupante sua moradia habitual e efetiva atividade de cultivo (art. 102: «Os direitos dos legítimos possuidores de terras devolutas federais estão condicionados ao implemento dos requisitos absolutamente indispensáveis da cultura efetiva e da morada habitual»);
(iv) terras, além disso, possuídas há mais de um ano, por ocupante que não seja proprietário de outro imóvel rural (inc. I do art. 29 da Lei 6.383), sem prejuízo da preferência aquisitiva prevista no inciso II do art. 97 do mesmo Estatuto da Terra: «todo o trabalhador agrícola que, à data da presente Lei, tiver ocupado, por um ano, terras devolutas, terá preferência para adquirir um lote da dimensão do módulo de propriedade rural, que for estabelecido para a região, obedecidas as prescrições da lei»).
Ainda os ocupantes de terras devolutas federais que não tenham obtido a outorga do título correspondente, poderão ter sua posse resguardada, desde que atendam ao pagamento da taxa anual de ocupação (cf. arts. 101 do Estatuto e 127 do Decreto-lei 9.760, de 1946: «Os atuais ocupantes de terrenos da União, sem título outorgado por esta, ficam obrigados ao pagamento anual da taxa de ocupação»). Esse pagamento induz à caracterização de posse pacífica do imóvel, inibindo sua incorporação ao patrimônio público (vejam-se, a propósito, Silvia C.B. Opitz e Oswaldo Opitz, Curso completo de direito agrário, ed. Saraiva, 11 ed., São Paulo, 2017, p. 365).
Conforme ainda se lê no Estatuto da Terra, em seu art. 99, a «transferência do domínio ao posseiro de terras devolutas federais efetivar-se-á no competente processo administrativo de legitimação de posse, cujos atos e termos obedecerão às normas do Regulamento» do mesmo Estatuto.
Esse processo −administrativo (note-se bem), assim o diz o Estatuto− foi disciplinado pela já referida Lei 6.383, a uma cuja brevíssima referência nos lançaremos agora.
1.137. Essa Lei 6.383 destina-se a regular o processo discriminatório das terras devolutas da União, tanto o de caráter judicial, quanto o administrativo, tal se lê em seu art. 1º: «O processo discriminatório das terras devolutas da União será regulado por esta Lei. [§] Parágrafo único. O processo discriminatório será administrativo ou judicial (veja-se também o disposto nos 15 e art. 19 do Decreto-lei 9.760, de 1946; o primeiro, prevendo serem promovidas pelo Serviço do Patrimônio da União «as demarcações e aviventações de rumos, desde que necessárias à exata individuação dos imóveis de domínio da União e sua perfeita discriminação da propriedade de terceiros», o segundo −art. 19− dizendo incumbir ao Serviço de Patrimônio da União «promover, em nome da Fazenda Nacional, a discriminação administrativa das terras na faixa de fronteira e nos Territórios Federais, bem como de outras terras do domínio da União, a fim de descrevê-las, medi-las e extremá-las do domínio particular»).
Interessa-nos aqui o tema registral. Há no Estatuto da Terra e no Decreto-lei 9.760 frequente referência ao registro de imóveis, já considerado na fase inaugural do processo administrativo de discriminação das terras −p.ex., inciso II do art. 3º do Estatuto, que prevê instruir-se o memorial descritivo da área objeto com «a indicação de registro da transcrição das propriedades», e ainda o inciso IV de seu art. 12, que preceitua contenha o termo de encerramento da discriminação administrativa «a indicação de registro da transcrição das propriedades».
É de relevância considerar ainda o que dispõem os arts. 13, 15 e 16 do mesmo Estatuto de Terra:
- art. 13: «Encerrado o processo discriminatório, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA providenciará o registro, em nome da União, das terras devolutas discriminadas, definidas em lei, como bens da União.
Parágrafo único. Caberá ao oficial do Registro de Imóveis proceder à matrícula e ao registro da área devoluta discriminada em nome da União»;
- art. 15: «O presidente da Comissão Especial comunicará a instauração do processo discriminatório administrativo a todos os oficiais de Registro de Imóveis da jurisdição»;
- art. 16: «Uma vez instaurado o processo discriminatório administrativo, o oficial do Registro de Imóveis não efetuará matrícula, registro, inscrição ou averbação estranhas à discriminação, relativamente aos imóveis situados, total ou parcialmente, dentro da área discriminada, sem que desses atos tome prévio conhecimento o presidente da Comissão Especial.
Parágrafo único. Contra os atos praticados com infração do disposto no presente artigo, o presidente da Comissão Especial solicitará que a Procuradoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA utilize os instrumentos previstos no Código de Processo Civil, incorrendo o oficial do Registro de Imóveis infrator nas penas do crime de prevaricação».
(Acrescente-se −ainda que a ocasião de um estudo conciso não permita aqui seu tratamento− o que consta dos arts. 18-A a 18-F do Decreto-lei 9.760, com os textos incluídos pela Lei 11.481, de 31-5-2007).
Os títulos −em acepção formal− idôneos para o registro das discriminações são, quanto ao processo administrativo, o termo de encerramento (art. 12 do Estatuto) e a licença de ocupação (§ 1º do art. 29 da Lei 6.383, de 1976: «A legitimação da posse de que trata o presente artigo consistirá no fornecimento de uma Licença de Ocupação, pelo prazo mínimo de mais 4 (quatro) anos, findo o qual o ocupante terá a preferência para aquisição do lote, pelo valor histórico da terra nua, satisfeitos os requisitos de morada permanente e cultura efetiva e comprovada a sua capacidade para desenvolver a área ocupada») e, quando ao processo judicial, a carta de sentença (arts. 21 e 22; confiram-se ainda os §§ 3º, 4º e 5º do art. 17 e os arts. 48 e 57 do Decreto-lei 9.760).
Na explanação seguinte examinaremos a legitimação de posse disciplinada pela Lei 13.645, de 11 de julho de 2017 −relativamente aos imóveis objeto de regularização fundiária urbana (Reurb).