Registro da legitimação de posse e de sua conversão em propriedade (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 368)

                                                                 Des. Ricardo Dip

1.128.   Passaremos agora a tratar dos registros −ambos em sentido estrito− previstos nos itens 41 e 42 do inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015/1973. O primeiro diz respeito à legitimação de posse. O segundo, à conversão da legitimação de posse em domínio.

Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, em seu vultoso Tratado notarial e registral (vol. 5, tomo I, item 3.1.2.1.1), observaram, com algum fundamento, que «o instituto da legitimação de posse é tipicamente brasileiro, estando intimamente relacionado à forma pela qual se deu a ocupação do território nacional», isso porque se adotara o regime de sesmarias, impondo-se aos sesmeiros as obrigações de colonizar a terra ocupada, demarcando-a e nela tendo moradia habitual, além de pagar os tributos correspondentes.

Esse regime de sesmarias, no entanto, descendeu da prática das presúrias, o que já deixamos indicado em explanações desta série «Registros sobre Registros» (ns. 333 a 338).

Para relembrar, em síntese, o que ficou dito nas exposições anteriores, o que hoje constitui o território de Portugal esteve sob uma primeira dominação da tribo dos lusitanos que, após a derrota de Viriato e de Sertório, foram sucedidos pelos romanos, que ocuparam a Península ibérica de 218 a.C. a 410, sobrevindo a exitosa invasão germânica −de suevos, entre 410 e 585, e visigodos, de 585 a 711. A partir de 711, data da Batalha de Guadalete, começaram os árabes islâmicos a dominar quase toda a Península hispânica, menos uma porção do norte, os Montes Cantábricos, e desde 718 passaram os muçulmanos, vencidos na Batalha de Covadonga, a retroceder pela Península. A esse retrocesso, com a paulatina vitória dos cristãos, instaurou-se a Reconquista, recuperando-se de início a Galícia e a região entre os rios Minho e Douro.

Assim, no aspecto material, a Reconquista foi a recuperação dos territórios hispânicos que haviam sido dominados pelos árabes. A essa recuperação territorial deu-se o nome de presúria.

As presúrias, pois, eram áreas geográficas retomadas dos árabes e que eram, assim, incorporadas ao reino vitorioso: até o ano de 910, tratava-se do Reino das Astúrias. Todavia, já em 868, o rei asturiano Dom Alfonso III criara dois condados −o de Castela e o Portucalense−, que, sendo presúrias, foram atribuídos à gestão de nobres nobiliárquica. Assim, a região que hoje constitui o norte do território de Portugal −vale dizer, a área entre os rios Minho e Douro− foi entregue, a título hereditário a Vímara Peres (845-873), e a essa área, Diogo Freitas do Amaral (Da Lusitânia a Portugal, ed. Bertrand, Lisboa, 2017, p. 56 sqq.), designa de primeiro Condado portucalense−, condado que se expandiu com a reconquista de Coimbra, passando a estender-se do Minho ao Mondego. Uma infrutuosa tentativa de libertar-se da vassalagem (então relativa ao Reino de Leão) pôs fim, em 1071, a esse primeiro Condado portucalense, e sucedeu-o um segundo, que durou até 1.094, quando o Rei leonês Dom Alfonso VI concedeu a governança do Condado ao Conde Henrique de Borgonha, inaugurando-se, assim, assim, o terceiro Condado Portucalense, ainda uma vez com terras atribuídas pelo poder político, senão ao domínio, ao amplo uso dos particulares escolhidos.

O instituto da presúria, se, de um lado, é um modo de obtenção de domínio público, configurava, de outro lado, a prática de uma discricionária disponibilidade em prol de particulares (sobretudo nobres), com o principal objetivo de efetiva ocupação das terras. Lê-se, a propósito, no tomo IV da História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV, de Henrique da Gama Barros:

«Há, porém, um indício claro de que a reconquista dispunha de vastos terrenos, que estavam despovoados e incultos. É a natureza do título em que, não raro, nessa época se funda a aquisição do domínio. Referimo-nos às presúrias.»

E prossegue Gama Barros:

«A distribuição de terras vagas em consequência da guerra foi o meio de que, nos primeiros séculos, usaram geralmente os reis neo-góticos para fomentar a povoação e cultura nos terrenos, em que iam consolidando o seu império. Tomar de presúria uma terra significava ocupá-la, como cousa própria, com autorização do soberano, que deste modo conferia ao ocupante, presor, o direito de propriedade sobre esse prédio. Desde o século XVIII aparecem os exemplos.

 A ocupação de presúria é o título que se alega em muitos atos para fundamentar o direito de propriedade

É da história que as despesas para a povoação do território brasileiro sangravam em muito o erário de Portugal, e este foi um dos motivos pelos quais a Monarquia lusitana adotou entre nós o sistema das capitanias hereditárias, iniciado em 1504, quando Dom Manuel I, «O Venturoso», criou a Capitania da Ilha de São João, depois denominada Capitania Fernando de Noronha. Quando, mais tarde, a Dom João III adotou de modo mais extenso do sistema das capitanias, outra coisa não fez do que reproduzir os efeitos jurídicos da antiga presúria: o historiador brasileiro Hélio Vianna, após dizer que esse sistema das capitanias não era novidade «novidade em Portugal», observou que era somente uma adaptação do antigo modo »de doação dos bens da Coroa» (in História do Brasil, ed. Melhoramentos, São Paulo, 1994, p. 62).

Não diversamente escreveu Boris Fausto:  «(…) lembremos que ao instituir as capitanias a Coroa lançou mãos de algumas fórmulas cuja origem se encontra na sociedade medieval europeia» (in História do Brasil, Edusp, 13.ed., São Paulo, 2009, p. 45; cabe assinalar que esse autor entende que as capitanias não conferiam domínio territorial aos particulares, mas apenas a posse da terra).

Veja-se o que escreveu César Tripoli, na História do direito brasileiro (ed.  Revista dos Tribunais, São Paulo, 1936, vol. I, p. 84):

«O rei João III (1521-1557), pois, mandou dividir, em 1532, o litoral do Brasil em extensões de cinquenta léguas portuguesas, que constituíram outras tantas capitanias, dando-as, nos anos de 1534 a 1536, a alguns de seus fidalgos beneméritos, capazes, por seus haveres, de fomentar o desejado desenvolvimento colonial

Pois bem, o nosso regime de sesmarias descendeu do regime das presúrias, derivou da experiência da Reconquista, e, em sua história legislativa, a legitimação de posse emerge, entre nós, como o reconhecimento da legitimidade dessas ocupações −ditas «primárias»− das terras que, por direito de invenção, eram da Coroa portuguesa.

Tenha-se em conta, a propósito, o disposto no art. 5º de nossa Lei imperial 601, de 18 de setembro de 1850:

«Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por ocupação primaria, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas, ou com princípio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes: 

  • 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, compreenderá, além do terreno aproveitado ou do necessário para pastagem dos animais que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, contanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha. 
  • 2º As posses em circunstâncias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em comisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito à indenização pelas benfeitorias.

 Excetua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hipóteses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionários e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco anos; 3ª, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 anos. 

  • 3º Dada a excepção do parágrafo antecedente, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionário ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se também posseiro para entrar em rateio igual com eles. 
  • 4º Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais freguesias, municípios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a prática atual, enquanto por Lei não se dispuser o contrário.»

Prosseguiremos.