(da série Registros sobre Registros, n. 366)
Des. Ricardo Dip
1.124. Como já o vimos na exposição anterior desta série «Registros sobre Registros», o direito de superfície é um direito real (cf. art. 1.1225 do Código civil brasileiro de 2002) que, tendo por objeto somente imóveis, dissocia as titularidades jurídicas (i) do solo e (ii) das construções e plantações.
Tratemos agora de umas poucas questões relativas ao registro constitutivo do título do direito de superfície.
A primeira consideração deve, assim parece, dirigir-se ao controverso tema (já examinado no item 1.122 da explanação 365 desta série «Registros sobre Registros») acerca da sobrevivência da Lei nacional 10.257, de 10 de julho de 2001, a despeito da edição posterior do Código civil.
Antecipamos, nessa matéria, a opinião −ancorada na doutrina de Luciano de Camargo Penteado e de Arnaldo Rizzardo− de que o Código civil não revogou, nem derrogou a Lei 10.257 (Estatuto da cidade). Mas a matéria pende de discussão: bastaria lembrar que Carlos Roberto Gonçalves sustenta diverso entendimento.
Além das distinções apontadas na exposição anterior (item 1.122), outra há que aparenta robustecer a convivência dos dois tipos de superfície: é que o Estatuto da Cidade versa apenas a hipótese do direito de superfície relativo a pessoa jurídica de direito público interno, certo que a Lei 10.257 estabelece diretrizes gerais da política urbana, ao passo em que o Código civil, embora também se aplique a essa hipótese de superfície constituída por pessoa pública, refere-se ainda a imóveis particulares.
Leia-se, a propósito, o art. 1.377 do Código civil: «O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversamente disciplinado em lei especial».
Adotando-se o critério conciliatório das duas normativas, saber qual lei aplicar resulta, num primeiro momento, das pessoas que intervêm na relação de superfície. Se apenas particulares, aplica-se o Código civil. Se pessoa jurídica de direito público interno, o Estatuto da Cidade. Mas, num segundo passo, se o imóvel for rural, sempre há de incidir o Código civil, porque o Estatuto da Cidade se restringe aos imóveis urbanos.
A distinção ganha particular relevo quando se considere o tema do prazo do direito de superfície, que terá sempre duração determinada, quando aplicável o regime do Código civil (art. 1.369), diversamente do que ocorre com o Estatuto da Cidade, que prevê que o direito de superfície se constitua «por tempo determinado ou indeterminado».
1.125. Outra interessante questão diz respeito à possibilidade de registrar-se o título constitutivo do direito de superfície sobre imóvel rural.
Com efeito, a Lei de registros públicos prevê que se registre (em acepção estrita) a constituição do direito de superfície de imóvel urbano (item 39 do inciso I do art. 167).
Calha, como ficou dito, que se admite o direito de superfície sobre imóvel rural. Sem embargo da escassez de julgados acerca do tema, tem-se, na Tutela Provisória em Ação Cível Originária 3.134, julgada no STF (28-6-2018), referência ao «direito de superfície sobre áreas destinadas à regularização fundiária urbana e rural».
Ora, lê-se no caput do art. 1.369 do Código civil: «O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis». Tenha-se em conta não se distinguir, no texto, a natureza urbana ou rural do terreno.
Em acréscimo, tratando-se, com o instituto da superfície, de um direito real (inc. II do art. 1.225 do Código civil), é aplicável o disposto no art. 1.227 do mesmo Código: «Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código».
Assim, em que pese ao fato de a Lei 6.015 apenas referir-se ao registro (stricto sensu) do título constitutivo do direito de superfície sobre imóvel urbano, deve admitir-se também registrável −em sentido estrito− a causa jurídica que tem potência para constituir-se o direito real de superfície de imóvel rural.
Mais uma vez se tem à frente uma situação em que se avista em xeque a corrente favorável à taxatividade da lista do inciso I do art. 167 da Lei 6.015. Não se reconhecera a exemplaridade desse rol, não seria possível a constituição do direito real de superfície de imóvel rural, embora previsto no sistema do Código civil.
1.126. Por fim, enunciam a Lei 10.257 e o Código civil:
− Art. 21 (caput, da Lei 10.257): «O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis»;
- Art. 1.369 (caput, do Código civil): «O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis.»
Tal se vê, tanto um, o Código civil, quanto a outra, a Lei 10.257, exigem escritura pública para a constituição do direito de superfície.
Para logo, não se aplica à situação do direito de superfície o disposto no art. 108 do Código civil: «Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País».
Assinale-se que, ao revés do que se admite para o registro do uso especial de imóvel com fins de moradia (item 38 do inc. I do art. 167 da Lei 6.015) −em que se permite a apresentação de «termo administrativo» ao registro de imóveis−, já na hipótese do direito de superfície, ainda pois o regido pelo Estatuto da Cidade, o título formal suscetível de amparar o registro é a escritura pública (é dizer, a escritura notarial), somente −em dadas situações excepcionais− substituída por título judicial.