(da série Registros sobre Registros, n. 283)
Des. Ricardo Dip
977. Consideremos um tanto o capítulo da ata notarial a que se refere o inciso I do art. 216-A da Lei 6.015, dispondo que o pleito extrajudicial de usucapião deva instruir-se com “ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e de seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias (…)”.
A expressão ata notarial vale por todo um gênero, porque ela possui muitas espécies. Todas estas, porém, possuem o traço comum em que consistem na captação e percepção sensorial de fatos pelo notário −ainda que haja alguma singularidade para reportar esse traço comum à ata de notoriedade.
A ata notarial, portanto, é essencialmente o resultado exterior da captação de fatos sensíveis pelos sentidos externos do notário (visão e audição, mas a audição, desde que concorra com a visão −Núñez Lagos). É muitíssimo controverso admitir que essa captação sensorial possa provir de outros sentidos externos: tato, olfato, paladar; e mais controverso ainda, possa ela derivar dos sentidos cinestésico −pelo qual pode captar-se o estado de repouso ou de movimento do próprio corpo ou de seus membros− e palestésico −pelo qual se captam as vibrações (cf. Rafael Gambra).
Só pode ser objeto da captação sensória um fato sensível, ou seja, captável pelos sentidos externos, seguindo-se sua percepção pelos sentidos internos (especialmente a imaginação e a cogitativa), para, ao fim, submeter-se às operações intelectuais (simples apreensão, julgamento e raciocínio).
Estes limites para a atuação do notário, quanto à ata, manifestam, de par com seu relevo teórico, uma grande importância para a demarcação da fé pública notarial, o que, no quadro do processo extrajudicial de usucapião, é de notório interesse, porque impõe as fronteiras adequadas ao posterior juízo de qualificação registral.
Em outros termos, não é todo o conteúdo da ata notarial referida no inciso I do art. 216-A da Lei 6.015/1973 que estará à margem de uma qualificação negativa que eventualmente possa proferir o registrador de imóveis. Apenas os fatos sensíveis captados e percepcionados pelo notário estão a salvo da qualificação registral, mas não a compreensão, a interpretação e o próprio conteúdo de declarações que sejam recolhidas pelo notário e narradas na ata notarial. Esta distinção é de importância nuclear para a moldura correta da dúplice qualificação −notarial e registral− que concorre para o processo extrajudicial de usucapião.
978. Diz o inciso I do art. 216-A da vigente Lei de registros públicos que o pedido para instaurar-se o processo extrajudicial de usucapião deva acompanhar-se, como já ficou dito, de ata notarial “lavrada pelo tabelião”.
O vernáculo tabelião deriva de um substantivo da língua latina (tabula, tabullæ: tábua coberta de cera, sobre a qual redigiam os scribæ romanos, que são antecessores remotos dos atuais tabeliães. O termo notário também é de origem latina: o preâmbulo das escrituras públicas romanas escrevia-se assim: “Notum sit omnibus hoc publicum instrumentum visuris” −saibam quantos o instrumento público virem (João Mendes Jr.).
A Lei brasileira 8.935, de 1994, inclui o tabelião −acertadamente− numa das espécies dos “profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro” (art. 3º), alistando-lhe as atribuições (arts. 6 e 7º), e, entre elas, a de expedir ata notarial; isto é mais próprio do tabelião de notas (a lei fala em ser sua exclusividade -inc. III do art. 7º), mas não cabe excluir que o tabelião especial de protestos de títulos emita atas notariais (exatamente as de protesto).
979. Prescreve o inciso I do art. 216-A da Lei 6.015 que, nessa aqui versada ata notarial, deva o tabelião atestar o tempo da posse ad usucapionem.
O vocábulo atestar −que vem do verbo latino attesto, attestare− significa, propriamente, afirmar, testemunhar ou provar com caráter oficial. Em acepção imprópria, desveste-se dessa natureza de asserção oficial e recruta os sentidos de testemunhar, provar, demonstrar, em geral, de modo simples, sem qualificação específica.
Assinando-se na lei ao tabelião a competência para a lavratura de uma ata notarial, “atestando o tempo de posse”, não é de compreender que o legislador haja imposto conteúdo inadequado ao verbo atestar. Ou seja, que haja o legislador buscado que o notário atestasse sem fé.
Efetivamente, o atestar emanado do tabelião é uma afirmação, testemunho ou prova oficiais, vale por dizer: uma asserção dotada de fé pública.
A questão aqui está em saber se, com efeito, é possível que, de maneira corrente, possa o tabelião atestar o tempo de uma posse, na medida em que a atestação notarial é resultante de sua pessoal captação e percepção de fatos sensíveis. Ou seja: para viabilizar-se que um tabelião ateste o tempo de uma posse é indispensável que o tabelião haja, por si próprio, captado e percepcionado sensivelmente todo o tempo dessa posse −ou, em outras palavras, a posse durante todo seu tempo.
Se, diversamente, o tabelião capta uma parte do tempo da posse ou apenas a notícia −trazida por terceiros− do tempo de que se trate, não será possível atestar-lhe o tempo integral, porque a fé notarial, atributo da atestação, exige sempre a captação e a percepção, pessoal e direta pelo notário, do fato sensível objeto (ou seja: a posse).
Assim, de comum, não será possível observar a exigência legal de que o tabelião ateste o tempo de posse, de maneira que a atestação correspondente, não atraindo fé pública, apenas configura uma asserção de valor testemunhal simples, suscetível não só de revolvimento extrajurisdicional (ao revés do que se passa com as afirmações que contem com a fé do notário, apenas sindicáveis em jurisdição contenciosa), mas até submetida à qualificação registral (o registrador pode, de fato, apreciar o tempo de posse “atestado” pelo tabelião).