Registro de transferência para sociedade, com o fim de integralização de quota social (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 326) 

                               Des. Ricardo Dip

 

1.062.           A Lei 6.015 arrola entre os títulos materiais registráveis em sentido estrito o da transferência de imóvel a sociedade, quando essa transferência vise a integrar quota social (n. 32 do inc. I do art. 167).

É de Clóvis Beviláqua a lição de que "toda pessoa jurídica, por isto mesmo que o é, tem capacidade para adquirir patrimônio" (nota 5 ao art. 16 do Código civil dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, ed. Rio. 1979, tomo I, p. 220), e entre as maneiras societárias de adquirir está a «conferência de bens» −ou ainda «colação de bens»−, traduzindo a ideia de agregação, juntada, reunião de bens a uma determinada massa; assim também é esta uma denominação que frequenta o direito hereditário, em que a conferência ou colação tem por objetivo a igualdade das legítimas sucessórias. Quanto à referida previsão da Lei 6.015, diz ela respeito ao registro (stricto sensu) da conferência de imóveis feita por um sócio com o fim de satisfazer sua parte (quota) no capital societário. Vale dizer que não se cuida, na Lei 6.015, do registro de todas as maneiras com que se pode integralizar uma quota social, porque isto pode fazer-se, além de por meio de imóvel, mediante dinheiro e outros bens móveis, títulos alheios à inscrição no ofício imobiliário.

Devem distinguir-se, de um lado, o capital social subscrito, e, de outro lado, o capital social integralizado: aquele é o conjunto de bens prometidos pelos sócios para a formação da sociedade, com que se define a distribuição do todo com que cada sócio se compromete, discriminando-se as quotas ou partes sociais. Já o capital integralizado é a efetivada satisfação ou adimplemento dos valores prometidos à sociedade.

Segundo a letra da Lei 6.015, a transferência imobiliária indicada no item 32 do inciso I do art. 167 visa à integralização do capital societário, vale dizer, tem o restrito objetivo de satisfazer a parcela preliminarmente subscrita −prometida− pelo sócio para a formação desse capital. É controversa a extensão dessa regra à hipótese de aumento do capital social; entende-a possível Alexandre Laizo Clápis, na obra coletiva Lei de registros públicos comentada, de que foram coordenadores José Manoel de Arruda Alvim, Everaldo Augusto Cambler e o mesmo Alexandre Clápis (Rio de Janeiro, ed. Gen-Forense, 2014, p. 743).

1.063.            O Código civil brasileiro de 2002, reiterando a linha adotada pelo Código civil anterior (art. 13), após dividir as pessoas jurídicas em públicas e privadas, subdividindo as primeiras em pessoas de direito público interno e pessoas de direito público externo (art. 40: "As pessoas jurídicas são de direito público, interno ou externo, e de direito privado"), enunciou a classificação das pessoas jurídicas de direito privado (art. 44), alistando-as assim: (i) associações; (ii) sociedades; (iii) fundações; (iv) organizações religiosas (cuja inclusão no Código se deu com a Lei 10.825, de 22-12-2003) e (v) partidos políticos (por igual incluídos no Código civil por força da mencionada Lei 10.825). Arrolavam-se ainda, entre as pessoas jurídicas de direito privado, as empresas individuais de responsabilidade limitada, mas a Lei 14.382/2022 (de 27-6) revogou, como se lê na alínea a do inciso VI de seu art. 20, a previsão correspondente a essas empresas que constava do inciso VI do art. 44 do Código civil.

Discriminadas, de uma parte, as associações e as sociedades −na terminologia adotada pelo Código−, e, de outra parte, as fundações, nisto que estas se caracterizam por seu aspecto predominante material e objetivos externos (o de um patrimônio especialmente destinado à realização de fins não econômicos: cf. art. 62 do Código civil; «universidade de bens personalizada", na lição de Clóvis), ao passo em que as associações e as sociedades se configuram pela dominância de sua natureza pessoal e fins próprios dos sócios, subdistinguindo-se estas últimas em: (i) associações, que são corporações não crematísticas −isto é, não têm fins lucrativos, como se lê no art. 53 do Código: "Constituem-se as associações pela união de pessoas que se organizem para fins não econômicos";  e (ii) sociedades, que visam ao lucro, compreendendo em seu conceito quer as outrora chamadas sociedades civis (inc. I do art. 16 do Código civil de 1916, agora ditas sociedades simples), quer as antes denominadas sociedades mercantis (inc. II do referido art. 16, que se designam agora sociedades empresárias).

Tendo o Código civil de 2002 versado todas as sociedades −isto é, dando-lhes a todas o comum status de civil−, o que distingue as sociedades empresárias em relação às sociedades simples está exatamente na atividade econômica empresarial daquelas, pois que elas se organizam "para a produção ou a circulação de bens ou de serviços" (art. 966), reputando-se sociedade empresária, no texto legal, "a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário" (art. 982).

Com seus variados tipos (arts. 1.039 a 1.093 do Código civil), as sociedades empresárias podem ser em nome coletivo (art. 1.039), em comandita simples (art. 1.045), limitadas (art. 1.052), anônimas (regidas por lei especial, com aplicação supletiva do Código civil −arts. 1.088 e 1.089), em comandita por ações (art. 1.090) e cooperativas (art. 1.093).

Já a configuração das sociedades simples possui maior espectro (Código civil: art. 983, parte final), embora tanto estas quanto as sociedades empresárias devam, para constituir-se juridicamente, inscrever seus contratos sociais, a sociedade simples no registro civil das pessoas jurídicas do lugar de sua sede (art. 988 do Código; ainda o art. 114 da Lei 6.015); a sociedade empresária, no registro público de empresas mercantis também do local de sua sede (art. 967 do Código civil), registro, este último, de que se incumbem as juntas comerciais  (§ 3º do art. 967).

Assinale-se que o contrato constitutivo das sociedades simples deve enunciar "a quota de cada sócio no capital social, e o modo de realizá-la" (inc. IV do art. 988 do Código civil), de sorte que se avista a possibilidade de a integralização dessa quota efetivar-se depois da inscrição do contrato no ofício registral competente. Quanto à sociedade empresária, somente se exige, para a inscrição, a integralização do capital social, quando houver incapaz partícipe dessa sociedade (inc. II do § 3º do art. 974 do Código civil).

Deve, pois, distinguir-se entre a inscrição constitutiva das sociedades e o modo como, por intermédio do registro imobiliário, pode dar-se a integralização das quotas sociais −com a constituição de domínio em favor das sociedades−, matéria exatamente de que se trata neste capítulo.