Registro de outros negócios jurídicos

         (da série Registros sobre Registros, n. 380)

                                                      Des. Ricardo Dip

1.147.  A Lei 14.711, de 30 de outubro de 2023, acrescentou um item à lista dos atos suscetíveis de registro imobiliário em sentido estrito. Cuida-se do item 48 agregado ao inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, e que diz respeito ao registro «de outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, ressalvadas as hipóteses de averbação previstas em lei e respeitada a forma exigida por lei para o negócio jurídico, a exemplo do art. 108 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)».

         A redação desse dispositivo surpreende, com efeito. Para logo, não é costumeira a formulação legal de exemplos, nem parece atender à melhor técnica legística a indicação de ressalvas que não concernem apenas à hipótese específica do item em que se apontam, antes abrangendo toda a série de itens do inciso I do mesmo art. 167 da Lei 6.015.

         Mas, deixando à margem o problema redacional, vejamos do que se trata com a nova previsão legal.

         Em algo soa prudente a novidade legislativa. É que já tivemos problemas anteriores com a falta de uma referência expressa à registrabilidade de alguns títulos. Lembremo-nos, por exemplo, da alienação fiduciária de imóveis em garantia, ou ainda da multipropriedade. Instalou-se controvérsia acerca da possibilidade de seus registros, à míngua de expressa previsão legal.

         Esse tema, como de hábito em tantos outros pontos, envolvia a surrada discussão acerca da taxatividade ou exemplificatividade da indicação legal dos títulos registráveis. Parte da jurisprudência quer doutrinária, quer judicial (sobretudo pense-se na judicial administrativa) acolhe-se na ideia de que os títulos suscetíveis de registro stricto sensu estão arrolados na Lei 6.015 in numerō clausō; outra parte, sustenta que essa taxatividade é temperada pela possibilidade de leis extravagantes da Lei 6.015 preverem expressamente esse registro para dados títulos; uma terceira corrente hospeda-se na afirmação de estar em numerus apertus a lista legal dos títulos registráveis. Por mais pareça, hoje, prevalecente essa última apontada orientação, não deixa de ser prudente sua acolhida num texto legal.

         Agora, com efeito, a partir da vigência da Lei 14.711, de 2023, tem-se por certo que o rol dos títulos passíveis de registro imobiliário em sentido estrito está in numerō apertō. Porque é da lei que se registrem «outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis».

         A condição normativa dessa possibilidade de registro é que digam os títulos respeito à transmissão do direito real de propriedade ou à instituição de direitos reais imobiliários menores.

         Solucionou-se, pois, prima facie, uma controvérsia que parecia infinda.

         A enunciação do pronome «outro» põe a salvo a quase consequente desnecessidade da relação dos títulos constantes dos demais itens do inciso I do art. 167 da Lei 6.105. Talvez fosse mesmo da boa praxis legislativa mencionar que se registram em sentido estrito os negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis, acrescentando, de maneira expressa, umas tantas exceções relativas a negócios de caráter não jurídico-real (p.ex., a locação de prédios, nos quais tenha sido consignada cláusula de vigência na hipótese de alienação, o penhor de máquinas e de aparelhos utilizados na indústria, as penhoras, os arrestos e os sequestros de imóveis). Isso simplificaria o texto legal, eliminando um dos problemas resultantes do fenômeno contemporâneo da hiperlegislação.

         Por outro aspecto, a nova disposição legal não propicia uma atração universal dos negócios relativos a imóveis −o que responderia às peregrinas fabulações em redor do só suposto novo «princípio da concentração». É explícita na lei que, além das previsões já constantes da Lei 6.015, apenas podem aceder ao registro em sentido estrito «outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis». Vale dizer: negócios não meramente obrigacionais, mas que, isto sim, concirnam à transmissão da propriedade imobiliária ou à constituição de direitos reais destacados do domínio predial.

         Daí que não caiba convergir ao registro imobiliário um título de simples empossamento ou de comodato. Quanto ao registro de posse, basta a previsão relativa à legitimação possessória (item 41 do inc. I do art. 167 da Lei 6.015). Já no que respeita ao comodato, falta-lhe o caráter jurídico real. O risco de um excessivo alargamento de hipóteses acessíveis ao registro é o da diminuição de sua eficácia.

         A nova previsão legal, por fim, ressalva as hipóteses de averbação indicadas em lei e determina que se respeite a forma legalmente exigida para o negócio jurídico, reportando-se ilustrativamente ao disposto no art. 108 do Código civil. Parecerá que o uso do pronome «outros» −é dizer: outros negócios jurídicos de transmissão do direito real de propriedade sobre imóveis ou de instituição de direitos reais sobre imóveis− já seria bastante para não extrair a revogação das normas legais relativas aos averbamentos. Para mais, não se avista motivo de observar, numa lei do processo de registro, que a morfologia legal dos títulos, o que é uma questão anteprocessual para o registro, deva ela ser satisfeita segundo os ditames da lei.

         De toda a sorte, o benefício maior que se extrai do novo dispositivo é o de pôr fim à discussão acerca do caráter exemplificativo ou taxativo dos títulos objeto de registro imobiliário em sentido estrito, além de salvaguardar que eventuais novos direitos de natureza real imobiliários tenham ingresso no ofício predial sem que se ponha a necessidade de emendar a normativa formal do registro de imóveis.

         Para quem −e é nosso caso− não se inclina em favor do vórtice de frequentes mudanças legislativas, é ao menos confortante reconhecer que, com esse novo item −48− do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, se haja dado um passo de adequado aperfeiçoamento do sistema, ou seja, um passo de progresso na linha de continuidade.

         Enfim, em meio a saltos no escuro, esse novo dispositivo lançou boas luzes sobre um antigo problema. E parece ter a ele dado correto meio de solução.