(da série Registros sobre Registros, n. 337)
Des. Ricardo Dip
1.084. Para encerrar a parte introdutória do capítulo sobre o registro da desapropriação imobiliária, e já nos tendo dedicado a, de modo sumário embora, a referir a radicação dos critérios que nortearam a partilha do mundo entre Portugal e Espanha, sobretudo por meio do Tratado de Tordesilhas, ao conceito e realidade da presúria −instituto adotado pelo ius gentium−, tratemos agora de reportar-nos, ainda uma vez de maneira concisa, à natureza jurpidica das capitanias hereditárias e ao princípio do uti possidetis, que, como aparente descendência da presúria, veio a prevalecer na definição do domínio das terras nas Américas espanhola e portuguesa.
Reiteremos, à partida, os dois aspectos com que se deve considerar o instituto da presúria. Primeiro aspecto, o de a presúria ser um fato ou ato de ocupação de terras. Segundo aspecto, o de esse fato ou ato emanar o direito de propriedade das terras apresadas. Ainda que esta emanação jurídico-dominial estivesse condicionada, na hipótese da presúria por ação particular, de uma autorização real, ou, ainda, da habitação do lugar pelo próprio seu ocupante inicial ou por alguém a quem ele cedesse a ocupação, é irrecusável a nota do apresamento como fato ou ato a que vinculado o direito de domínio. Insista-se em que a presúria poderia provir de uma conduta pública −com forças dos próprios reinos− ou de ação particular, mas esta última sempre de algum modo referível ao placet real.
Ao largo do tempo, foram mais especializadas as condições pelas quais a ocupação de terras era válida como título de domínio −p.ex., com a exigência do apossamento efetivo e não meramente nominal (considere-se, a propósito, o requisito da publicidade da ocupação, como a implantação de uma cruz, de um estandarte, de um marco, na terra apresada). Como já o deixamos dito, porém, entendeu-se a presúria como instituto do direito de gentes, e Hugo Grotius chegou a dizer que essa ocupação era o único título natural de domínio. A presúria não se estabeleceu só por motivos econômicos −uma redução economicista é sempre algo que agrada aos pensadores materialistas−, mas o fato é que havia um conjunto de razões que conspirava em favor da presúria. Assim, o interesse de povoamento (ou, quando o caso, de repovoamento) das terras recuperadas do domínio islâmico (sem prejuízo de alguma concorrência da prática do «ermamento», para prestigiar os demais fatores da presúria); além disto, o objetivo político de garantir o poder sobre o território (não há verdadeiro estado sem território); por fim, mas não menos importante, com o fim de recristianizar a cultura: os tempos eram, com efeito, muito fecundos no escopo de dilação da fé cristã pelas autoridades políticas.
Veja-se o que, a propósito, ensinou Waldemar Ferreira: o poder público, visando a ordenar, ainda que de maneira incompleta (ou seja, sem ânimo totalitário), a vida as comunidades que se iam formando, expedia cartas de povoamento −entre os castelhanos: cartas pueblas, cartas de población−, cujo objetivo, expressado no próprio nome desses atos, era ao povoamento do território. Tratava-se de atrair povoadores, beneficiando-os com isenção de tributos e com a concessão de terras e casas, e esse direito foral, observou o mesmo Waldemar Ferreira, "penetrou em terras da América, assim pela influência portuguesa, quanto espanhola".
É no plexo desses objetivos −povoamento da terra, asseguração do poder político, sustentação econômica e dilatação da fé católica− que se estabelecem as capitanias hereditárias no Brasil, mantendo-se uma regulação cautelosa (e, talvez, ainda que com matizes, a antiga «lei mental» idealizada por João das Regras), de maneira a evitar o quanto possível o exagero de ambição dos particulares ocupantes das áreas concedidas.
Abdiquemos aqui, por brevidade de causa, de discutir sobre o possível caráter feudal do sistema adotado com as capitanias no Brasil, mas não nos escusemos de pôr ao menos em dúvida sua caracterização, tamanha e notória a distância entre empreendimento de nossos donatários e os dos nobres do senhorio feudal europeu. Como quer que seja, o fato é que o núcleo do conceito e da realidade da presúria parecia mantido à raiz das concessões das terras brasileiras, e, já o vimos, era também o critério que, em rigor, legitimava o Tratado de Tordesilhas.
Mas interessante será agora observar que, ainda após a obsolescência do Tratado de Tordesilhas, o âmago da presúria manteve-se pelo princípio do uti possidetis perfilhado no século XVIII.
Por que se tornara envelhecido o Tratado das Tordesilhas? José Pedro Galvão de Sousa resumiu bem a questão: desde logo, ainda ao tempo de seu surgimento, esse Tratado padecia de imprecisão, pois as 360 léguas a que se referia e que haviam de contar-se do arquipélago dos Açores, não se sabiam de qual ilha açoriana contassem; além disto, os estudiosos náuticos daquele tempo não se punham de acordo quanto à medida da légua marítima. Por isto, logo se estabeleceram três linhas possíveis de demarcação do que seria de Castela e do que seria de Portugal.
Presentes estas incertezas, súditos castelhanos, como se sabe, chegaram ao litoral paulista (Iguape e Cananeia), ao passo em que bandeirantes −portugueses e brasileiros− iam além dos lindes do Tratado das Tordesilhas, ocupando terras que estariam antes destinadas aos espanhóis.
O fato é que era necessário um novo tratado, e este, o Tratado de Madri, surgiu em janeiro e fevereiro de 1750, interrompendo-se em 1761, para reafirmar-se nos convênios de Santo Ildefonso em 1777 e 1778.
O que nos interessa aqui assinalar é a perseverança do critério que legitimara a presúria, qual seja, o da ocupação efetiva das terras, oque se consagrou com o nome de princípio do uti possidetis. Lembremo-nos, além disto, que, no século XIX, o Ato geral da conferência de Berlim (1885), adotou símile teoria da ocupação −reportada às costas continentais da África−, sendo de todo acertada a conclusão de Hildebrando Accioly no sentido de que parece incontestável que as regras desse Ato geral de Berlim −no essencial, reafirmando os critérios das presúrias− "eram a expressão do direito internacional da época".
Assim, a base territorial da nacionalidade brasileira assegurou-se graças ao Tratado de Madri, que, como ficou dito, persistiu no antigo critério de justificação de domínio já estabelecido com a presúria, como ocupação efetiva −e não meramente nominal−, para, desta maneira, cumprirem-se os objetivos social, político, econômico e religioso que se buscavam com a ocupação territorial.