Registro de compra e venda (quinta parte)

(da série Registros sobre Registros, n. 303) 

                        Des. Ricardo Dip

 

1.023.      Prosseguindo no capítulo do registro da compra e venda no ofício imobiliário, e, por agora, examinando de modo particular o próprio título da compra a venda, a presente exposição tratará do objeto deste contrato.

Carvalho de Mendonça, a quem temos recorrido com frequência para o exame doutrinário relativo ao pacto de compra venda, ensinou que o objeto desse ajuste é a totalidade das coisas, com a condição de que estejam elas in commercium.

Estar uma coisa in commercium é, em resumo, afirmar que possa ela alienar-se. Ou seja, o objeto da compra e venda é qualquer coisa alienável. Já o Código civil francês assim o previa em seu art. 1.598: “Tout ce qui est dans le commerce peut être vendu lorsque des lois particulières n'en ont pas prohibé l'aliénation”. Veda-se, portanto, a compra e venda de coisas extra commercium.

A coisa objeto da compra a venda pode ser corpórea ou incorpórea; vale dizer, que direitos e ações podem ser objeto desse contrato, tanto quanto o podem ser uma cadeira e uma garrafa de vinho.

Podem ser vendidas coisas móveis e coisas imóveis, coisas particulares e bens universais (as res universitatis). Quanto a estes últimos, a universalidade, de consonância com nosso Código civil de 2002, pode ser de fato (p.ex., a pintura relativamente à tela em que se lance, a escritura, ao papel em que se expressou, a escultura, ao mármore que se cinzelou) ou uma universalidade de direito (a herança, a massa falida, o patrimônio; cf. arts. 90 e 91).

Há, entretanto, uma exigência que, relativa ao acidente de tempo, restringe as substâncias que podem ser objeto da compra e venda.

Esse contrato pode ter por objeto coisas que sejam presentes (é dizer, sejam atuais) na data da celebração do ajuste, e também pode ter por objeto coisas então futuras (isto é, coisas potenciais ao tempo da conclusão do pacto); não, porém, de coisas pretéritas.

Por que a compra e venda pode dizer respeito a coisas futuras? Disse bem Orlando Gomes, é que esse contrato não transfere o domínio da coisa, mas somente gera a obrigação de transferi-la, de maneira que nada impede sua conclusão sobre coisa que, assim se avista, existirá no futuro (p.ex., uma colheita de café ainda em vias de produzir-se). E isto se prevê na primeira parte do art. 483 do Código civil brasileiro: “A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura”.

Não houvesse, por exemplo, norma especial proibitiva da alienação de lotes sem o registro do correspondente parcelamento que lhes dá origem e fundamento jurídico (assim, o disposto no art. 37 da Lei 6.766, de 19-12-1979: “É vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado”), seria, pois, de todo viável juridicamente, entre nós, uma compra e venda de lote ainda não segregado de sua gleba ou apenas de fato dela separado).

Assinale-se que nem toda coisa futura pode ser, entretanto, objeto da compra e venda: é o caso da coisa que faz parte de uma sucessão ainda não aberta; prevê o Código civil brasileiro de 2002: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva” (art. 426); todavia, essa vedação não atinge a coisa cuja sucessão já esteja aberta; daí que se admita a cessão de herança, desde que se satisfaçam duas condições: uma, a da abertura da sucessão; outra, a de que o título formal seja público, porque o direito à sucessão aberta é tido por imóvel nos termos do inciso II do art. 80 de nosso Código civil (cf., por todos, Caio Mário da Silva Pereira).

Tal se disse já, coisas passadas, é dizer, coisas que já não existam em ato, coisas que cessaram de existir, não podem ser objeto de compra e venda. Faltaria de todo esse objeto, pois sequer se poderia dizer potencial. Explícita, quanto a isto, é a primeira parte do art. 1.601 do Código civil francês: “Si au moment de la vente la chose vendue était périe en totalité, la vente serait nulle”.

A circunstância de que, em nosso direito vigente e em consonância com nossa tradição jurídica, a compra e venda não tenha por efeito a transferência da propriedade, limitando-se à obrigação do vendedor em transferir a coisa objeto do contrato, leva a que se possa admitir a venda de coisa alheia (p.ex., á a opinião de Orlando Gomes) ou, ao menos, que essa venda não seja nula, senão que apenas anulável (assim, Caio Mário); ainda entre os que sustentam ser nula a venda de coisa de domínio alheio, não falta quem admita a ratificação do contrato, se o vendedor a tempo e modo adquire a coisa (neste sentido, expressa é a possibilidade dessa ratificação no Código civil argentino, art. 1.330: “La nulidad de la venta de cosa ajena, queda cubierta por la ratificación que de ella hiciere el propietario. Queda también cubierta, cuando el vendedor ulteriormente hubiese venido a ser sucesor universal o singular del propietario de la cosa vendida”). Diversamente, no Código civil francês, porque na França a compra e venda tem o efeito de transferir a propriedade da coisa, o contrato é nulo se tem por objeto coisa alheia: “La vente de la chose d'autrui est nulle: elle peut donner lieu à des dommages-intérêts lorsque l'acheteur a ignoré que la chose fût à autrui” (art. 1.599).

Voltando ao tema da exigibilidade de a coisa estar em comércio, ou seja, que seja alienável, saliente-se que a falta de disponibilidade pode dividir-se em natural, legal, voluntária e judicial.

A indisponibilidade natural diz respeito à inviabilidade de apropriação de coisa pelos homens (p.ex., o ar, no estado de natureza).

A indisponibilidade legal é a que determina em lei ser extra commercium alguma coisa: nosso Código civil de 1916 possuía um dispositivo referente às coisas fora do comércio, seu art. 69, que as dividia em coisas insuscetíveis de apropriação e coisas legalmente inalienáveis; não já semelhante norma no Código civil brasileiro vigente, mas, p.ex., seu art. 100 indica  serem inalienáveis os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial “enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar”, isto porque o bens públicos dominicais podem ser alienados, como o enuncia o art. 101 do mesmo Código.

A indisponibilidade judicial é a que provém de uma decisão judiciária. Assim, p.ex., ao cuidar das nulidades registrais de pleno direito, a Lei brasileira 6.015, de 1973, prevê no § 3º de seu art. 214: “Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel”.  Sublinhe-se que esse bloqueio, num regime em que o registro imobiliário atualiza a potência de títulos, é dizer, tem eficácia constitutiva, corresponde a uma indisponibilidade.

A indisponibilidade voluntária é a proveniente de declarações de vontade, e tanto pode ser derivada de ato inter vivos (ex., a doação), quanto de título mortis causa (ex., o testamento).