Registro de compra e venda (conclusão)

(da série Registros sobre Registros, n. 313)

Des. Ricardo Dip

1.036. Para encerramos este capítulo acerca do registro da compra e venda de imóvel, falta-nos o exame de dois temas: o da venda com reserva de domínio e o da venda com opção de preferência, temas estes de que trataremos, de maneira breve, nesta explanação.

Consiste a venda com reserva de domínio −pactum reservati dominii− em um negócio jurídico de alienação no qual o vendedor se reserva a propriedade da coisa objeto até um momento pactuado, que, em geral, é o tempo relativo ao pagamento integral do preço aquisitivo pelo comprador. Ou seja, a alienação não ocorre donec pretium integrum solvetur −enquanto a integralidade do pagamento do preço não acontece.

O suposto da venda com reserva de domínio é o de o pagamento do preço ser feito a prazo, de maneira que a reserva constitui uma garantia em prol do vendedor. 

Observou, entre nós, no entanto, Orlando Gomes, que o pactum reservati dominii não consiste num simples negócio a prestações, porque, naquele, o vendedor continua dono da coisa até o pagamento integral do preço aquisitivo. 

Por outro lado, tampouco se trata de um mero contrato preliminar, porque não demanda nova contratação após o pagamento do preço (cf. Caio Mário da Silva Pereira, Instituições…, item 230; Orlando Gomes, Contratos, item 195). 

Pode entender-se superada a discussão acerca da validade da compra e venda com reserva de domínio. Houve outrora quem a negasse (p.ex., Bonelli, Gianturco, Butera −vide Degni, La compra vendita, item 54), mas pode talvez ainda dizer-se controverso o tema do registro do pactum reservati dominii tratando-se de negócio imobiliário. 

Esta é uma discussão quando menos teoricamente interessante; diz-se "teoricamente", porque, no direito brasileiro positivo atual, já não cabe admitir o pacto de reserva de domínio quanto a imóveis, pois o Código civil de 2002, em seu art. 521, apenas se refere à reserva dominial na venda de coisas móveis: " Na venda de coisa móvel, pode o vendedor reservar para si a propriedade, até que o preço esteja integralmente pago"; o instituto da propriedade fiduciária (cf. a Lei brasileira 9.514, de 20-11-1997) supre, quanto aos imóveis, a operação que corresponderia ao pactum reservati dominii.

A legislação brasileira referiu a reserva de domínio, por primeiro, numa normativa de caráter penal, o Decreto-lei 869/1938 (de 18-11), prevendo-se em seu art. 3º ser crime contra a economia popular "violar contrato de venda a prestações, fraudando sorteios ou deixando de entregar a coisa vendida, sem devolução das prestações pagas, ou descontar destas, nas vendas com reserva de domínio, quando o contrato for rescindido por culpa do comprador, quantia maior do que a correspondente à depreciação do objeto" (inc. III; esta e outras indicações legislativas estão apontadas na obra de Caio Mário).

Na sequência, editou-se o Decreto-lei 1.027/1939 (de 2-1), que, sem distinguir ser a coisa objeto da reserva móvel ou imóvel, instituiu seu registro no ofício de títulos e documentos: "O contrato de compra e venda de bens, de natureza civil ou comercial, com a cláusula de reserva do domínio, para valer contra terceiros, deverá ser transcrito no todo ou em parte, no registro público de títulos e documentos do domicílio do comprador" (art. 1º). 

Cabe referir que o Decreto-lei 4.847/1939 (de 9-12) e, depois dele, a vigente Lei 6.015 previram ainda o registro, em títulos e documentos, dos "contratos de compra e venda em prestações, com reserva de domínio ou não, qualquer que seja a forma de que se revistam, e os contratos de alienação ou de promessas de venda referentes a bens móveis" (texto da Lei 6.015, item 5º de seu art. 129; também no item 10: "a cessão de direitos e de créditos, a reserva de domínio e a alienação fiduciária de bens móveis"; note-se: bens móveis).

Voltando à questão, apenas, por agora, entre nós, de interesse meramente acadêmico, acerca do registro do pacto de reserva de domínio na hipótese da a compra e venda ter por objeto coisa imóvel, vejamos duas opiniões contrastantes, a de Caio Mário, admitindo o pronto registro do título, e a de Serpa Lopes, para quem esse registro só pode efetuar-se após o pagamento integral do preço.

Diz Caio Mário: "Nada impede que o efeito da transcrição fique subordinado a uma condição suspensiva. O contrato de compra e venda é acerto a toda espécie de condições (…)" (o.c., item 230, C).

Em contrário, para Serpa Lopes, "não pode ser levada a efeito a transcrição do contrato de compra e venda com reserva de domínio, com a forma de uma compra e venda sob condição suspensiva, pois o que é suspensivo não é o contrato, mas a transferência do domínio, além de se dever tomar em consideração que se o preço é elemento essencial da compra e venda, não o é o seu pagamento, que pode até deixar de ser realizado, sem que isto implique, muitas vezes, na rescisão do contrato" (item 552). 

Nada obstante o sempre razoável e autorizado entendimento de Serpa Lopes, parece que, existisse ainda, no Brasil, a compra e venda de imóvel com pacto especial de reserva de domínio, não seria caso de inibir o registro ainda antes da transferência dominial, que ocorre com o inteiro pagamento do preço aquisitivo, submetendo-se a inscrição ao amplo espectro da registração da compra e venda condicional, averbando-se o ulterior pagamento integral do preço aquisitivo.

1.037. Já se indicaram, ao largo deste capítulo sobre o registro da compra e venda imobiliária, algumas hipóteses de preempção ou preferência, em que se tem assegurado a uma pessoa "uma posição de prioridade em relação a outras, dada a situação em que se apresenta ou o direito em que se funda" (Ademar Fioranelli, Direito registral imobiliário, p. 487). Sua fonte pode ser diretamente legal (p.ex., a do condômino, quanto à aquisição de parte ideal de imóvel indiviso, e a do locatário) ou ser negocial, hipótese que caracteriza a compra e venda com pacto de preferência −protimeseos

Distingue-se esse pacto de preferência ou preempção do pacto de retrovenda, porque, como fez ver Carvalho de Mendonça, neste último pacto "pode o comprador ser obrigado a revender ao vendedor, enquanto (…), no promiteseos é uma simples preferência que só lhe confere direitos pessoais mui limitados" (Contratos no direito civil brasileiro, item 152). De maneira que a cláusula de preempção não impede que o comprador aliene a coisa a terceiro: "Se o fizer −disse Carvalho de Mendonça− deve indenizar ao titular da preferência o prejuízo que teve com a não aquisição a que tinha direito". 

No mesmo sentido, brevitatis causa, Clóvis Beviláqua: "Sendo o direito de preferência meramente pessoal, não acompanha a coisa alienada. Se o comprador, ao aliená-la, deixa de oferecê-la àquele que lhe vendeu, nem por isso a venda é nula. Apenas o primeiro vendedor tem ação para exigir, do primeiro comprador, perdas e danos pelo não cumprimento da obrigação de oferecer-lha" (Código civil dos Estados Unidos do Brasil, observação ao art. 1.149; para o Código civil de 2002, cf. art. 513: "A preempção, ou preferência, impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para que este use de seu direito de prelação na compra, tanto por tanto").

Dada essa natureza pessoal do pacto de preempção adjeto à compra e venda, não parece de admitir-lhe referência, seja no próprio registro da compra e venda do imóvel, seja em averbação correlata. Refere-se, no entanto, Ademar Fioranelli a estas duas hipóteses categorias −a do registro e a da averbação da preferência convencional (o.c., p. 488). É, contudo, uma inscrição inconveniente, na medida em que pode gerar a persuasão de que se trate aí de um direito real.