(da série Registros sobre Registros, n. 329)
Des. Ricardo Dip
1.069. Dando sequência ao tema do registro da doação entre vivos, matéria indicada no item 33 do inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, insistamos em que a doação se efetiva sem que se imponha por lei coercitiva. Isto já o diziam os romanos, no Digesto: liberalitas, nullo iure cogente. Mas aí se trata de uma liberalidade que leve a diminuir o patrimônio do doador e a aumentar o patrimônio do donatário. Todavia, pode haver liberalidade que não importe em doação: "No comodato e no depósito −ensinou Carvalho de Mendonça− existe, no fundo, uma liberalidade", mas não se caracteriza aí a doação, porque não existe nestes casos "um sacrifício de fortuna, uma alienação liberal, uma diminuição dos haveres do doador" (in Contratos no direito civil brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 1957, tomo I, p. 32 e 33).
E prossegue o mesmo Carvalho de Mendonça, já agora depois de incorrer em manifesta contradição de termos, ao afirmar que "tudo é relativo: eis a única verdade absoluta". Para ele, a essência da doação está em ser liberalidade espontânea com caráter irrevogável (mas é de ver que Agostinho Alvim ensinou não ser exato "afirmar que a liberalidade esteja presente em todas as doações", e isto parece de todo acertado, bastando pensar nas doações remuneratórias).
Em que consiste, porém, a liberalidade, que é, pois, muito frequente nas doações. Que espécie de virtude é essa liberalidade?
1.070. Parece importante considerar o caráter de hábito moral com que se define a liberalidade, especialmente porque a doação já foi objeto do que Carvalho de Mendonça chamou de «antipatia infundada».
A liberalidade, entretanto, é uma parte da justiça, não ao modo de uma sua espécie, mas como parte potencial, como virtude anexa à da justiça. Distinguem-se ambas essas virtudes: a justiça consiste em dar alguém a outro aquilo que é desse outro, ao passo em que a liberalidade corresponde a dar a outro o que é próprio de quem lhe dá alguma coisa. Justiça e liberalidade têm comum −e, por isto, diz-se que esta é parte virtual daquela− a alteridade, no plano subjetivo, e versar coisas exteriores, no aspecto objetivo. Além disso, têm ambas à raiz um dever: legal. o dever da justiça; um dado dever moral, o da liberalidade.
Pode dizer-se, pois, que a liberalidade é uma virtude que se acerca à da justiça, porque dela deriva, ao inclinar os homens ao desprendimento das riquezas e das coisas exteriores, em benefício de outros.
Embora, em uma acepção trivial, a liberalidade pareça abranger ou confundir-se com a misericórdia e a beneficência, é de rigor distinguirem-se, segundo os vários motivos que as induz e estimula, distinção como a faz Royo Marín, a quem seguimos nesta passagem. É que a misericórdia se move pela compaixão; a beneficência, pelo amor; a liberalidade, pelo pouco apreço que se tem pela pecúnia, o que, na liberalidade, move a que o dinheiro se dê não só aos amigos (a cujo limite tenderia a beneficência), mas também aos desconhecidos. Distinguem-se ainda a liberalidade e a magnificência, pois, ainda conforme o disse Royo, a magnificência refere-se "a grandes y cuantiosos gastos invertidos em obras espléndidas, mientras que la liberalidad se refiere a cantidades más modestas".
Dois vícios opõem-se à virtude da liberalidade: o da avareza e o da prodigalidade. Aquele configura-se como um apetite desordenado de bens exteriores; a avareza, que a doutrina clássica alista entre os «pecados capitais», pode afrontar a justiça −quando, por amor desordenado ao dinheiro, usurpa-se ou retém-se indevidamente o bem alheio; ou pode ofender a liberalidade. Já a prodigalidade consiste na dilapidação desordenada do patrimônio.
1.071. Como se divide a doação?
Em suas partes subjetivas (ou espécies), a doação, quanto a seu motivo, pode ser gratuita (a que se faz por motivo de pura liberalidade) ou remuneratória (a que se realiza por gratidão). Quanto ao modo, a doação pode ser pura (ou seja, sem condição) ou qualificada (a que tem aposta uma condição). Quanto a sua extensão, pode ser universal (ao referir-se à integralidade do patrimônio do doador) ou singular (concernindo a parte desse patrimônio −ainda aqui cf. Royo). Quanto aos bens, a doação pode ser de coisas móveis e de coisas imóveis, de coisas presentes e de coisas futuras; podem doar-se direitos, assim, p.ex., o refere Agostinho Alvim: "A cessão de direitos patrimoniais, a título gratuito, é doação"; e ainda: "Haverá doação por parte de quem sujeita o seu prédio a outro prédio, constituindo servidão, desde que o faça gratuitamente e a título de liberalidade" (in Da doação, itens 20 e 21). Quanto a seus títulos, a escritura pública é requisito das doações imobiliárias, tanto se atinja o limite indicado no art. 108 do Código civil brasileiro.
1.072. Ainda no plano objetivo −isto é, do objeto material das doações−, cabe observar que alguns bens não podem ser objeto desse contrato, como o sejam os que estão fora do comércio.
Discute-se acerca da doação de partes do corpo humano.
Veja-se, a propósito, esta passagem de Agostinho Alvim: "Uma senhora que tenha longos e belos cabelos poderá cortá-los e vendê-los, dada a sua utilidade para se fazerem perucas. [§] Ora, tais cabelos, enquanto parte do corpo humano, não estavam no comércio. Mas separados, podem nele ingressar, e tanto podem ser vendidos como doados" (o.c., item 25).
Esta solução, contudo, exige distinguir-se, para que não se estenda às hipóteses de pactos −ou até de atos unilaterais− de que resultem lesão de bens essenciais da personalidade ou grave risco a esses bens (assim, p.ex., considerem-se os bens da vida, da integridade corporal, da liberdade e da honra). Feita esta distinção, tem-se que a alienação de cabelos humanos −tema a que se referiu Agostinho Alvim−, dadas a ligeireza do perigo correspondente e a natureza temporária da ofensa, parece acomodar-se à licitude moral (veja-se, a propósito, Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, Coimbra, 1995, p. 408).
À consideração da licitude moral concorre ainda, nesta matéria, a determinação jurídico-positiva.
Prosseguiremos.