(da série Registros sobre Registros, n. 331)
Des. Ricardo Dip
1.076. Prosseguindo no breve exame do tema do registro imobiliário da doação entre vivos, trataremos agora da aceitação da liberalidade pelo donatário.
O fundamento jurídico da exigência de o donatário aceitar a liberalidade está posto no caráter contratual da doação. Assim já se lia no art. 1.165 do Código civil brasileiro de 1916: "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra, que os aceita", dispositivo que, na parte relativa à menção da natureza contratual da doação, reitera-se no art. 538 do Código agora vigente: "Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra" (observe-se, entretanto, que o Código de 1916, no aludido art. 1.165, indicava a aceitação do donatário, o que veio a omitir-se no art. 538 do Código em vigor). Para termos uma referência cônsona do direito moderno, veja-se o que, a propósito, dispõe o BGB alemão, na primeira parte do § 516: "Uma atribuição pela qual alguém enriquece a outro à custa de seu patrimônio é doação se ambas as partes estão de acordo em que a atribuição se realize gratuitamente".
Neste mesmo sentido, Agostinho Alvim, comentando previsão do Código civil nacional de 1916, observou que "ninguém pode duvidar da natureza contratual da doação, que por isso mesmo requer acordo de vontades" (in Da doação, cit., p. 88). Ainda antes, já isto o referira o mesmo autor: "A doação, como contrato que é, não prescinde da aceitação do donatário, porque só então as partes se vinculam uma à outra" (p. 40). E esse acordo de vontades tem de estabelecer-se, como visto, na relação entre o doador e o donatário, de maneira que este último aceite a liberalidade: "A aceitação −disse Clóvis Beviláqua− é elemento necessário à doação, pois que é um contrato, embora de natureza benéfica e, ordinariamente, unilateral" (in Código civil..., cit., observação n. 1 ao art. 1.166).
Todavia, tenha-se em conta que essa aceitação pelo donatário não haja de ser necessariamente expressa: "(…) há casos −escreveu Agostinho Alvim− em que a aceitação se presume, como na hipótese em que o donatário, cientificado da doação e do prazo para aceitá-la, deixa transcorrer o mesmo sem se manifestar" (p. 89). Além disto, prossegue Alvim, "o legislador é soberano, e poderia, até mesmo, desviando-se do sistema, dispensar a aceitação", desde que isto se previsse expressamente, e, tal se lê em Clóvis Beviláqua, a aceitação "por inferência, ou por falta de declaração em contrário" diga respeito às doações puras, porque "nas modais é indispensável a declaração expressa da aceitação" (obs. n. 2 ao art. 1.166).
O art. 218 da Lei brasileira 6.015, de 1973, estabelece que "nos atos a título gratuito, o registro pode também ser promovido pelo transferente, acompanhado da prova de aceitação do beneficiado". Esta previsão legal contempla as hipóteses de doação e de cessão gratuita de direitos (neste sentido, veja-se Valmir Pontes, Registro de imóveis, ed. Saraiva, São Paulo, 1982, p. 140) e reproduz, à letra, o que já previra nosso Regulamento registral de 1939 (par. único do art. 233).
A norma do art. 1.166 de nosso Código civil anterior –"O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita, ou não, a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça dentro nele, a declaração, entender-se á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo"− não tinha antecedente expresso no direito brasileiro, mas trilhava o que se indicara na segunda parte do § 516 do BGB alemão, que assim enuncia: "Se a atribuição se realizou sem a vontade do outro, o atribuinte [para o caso, o doador] pode requerê-la, assinando um prazo prudencial para declarar-se a aceitação. Depois do transcurso do prazo, vale como aceita a doação, se o outro não há tenha recusado antes. No caso de repulsa, pode ser exigida a restituição do atribuído, segundo as disposições acerca da restituição de um enriquecimento injusto". Nosso Código civil de 2022 reitera a norma do aludido art. 1.166 do Código de Beviláqua.
Tanto se reconheça, pois, que a doação seja um contrato, deve concluir-se que a aceitação da liberalidade pelo donatário seja um requisito substancial do negócio, de maneira que não se considera idônea a doação, ressalvadas as hipóteses de aceitação tácita ou de sua dispensa legal, sem que se expresse o placet do donatário. Assim o disse Carvalho Santos: "A aceitação, por parte do donatário, é essencial para a existência da doação", e continuou: "(…) o Código [trata-se aí do de 1916] desconhece a doação não aceita, ou cuja aceitação é presumida, ou em que o tabelião se substitui ao donatário, como admitia o direito anterior, quando a liberalidade era pura e simples" (in Código civil brasileiro interpretado, ed. Freitas Bastos, 9.ed., Rio de Janeiro, s.d., vol. XVI, p. 324).
Distingam-se, no entanto, de um lado, o caráter substancial do aceite, e, de outro lado, a maneira como deve apresentar-se: "La aceptación −lê-se em Federico Puig Peña− puede hacerse en la misma escritura de donación o en otra separada (…)" (in Tratado de derecho civil español, ed. Revista de Derecho Privado, Madri, 1946, tomo IV, vol. II, p. 174).
Há neste passo uma controvérsia que exige apontar-se: suponha-se que tendo assinado prazo para a aceitação da liberalidade pelo donatário (art. 539 do Código civil de 2002), morra o doador antes do aceite do beneficiário; entende parte dos doutrinadores −com oposição de alguns− que esta morte do doador, em tempo anterior à aceitação do donatário, extingue os efeitos da proposta (pois é disto que, em rigor, se trata antes da aceitação: a liberalidade é um proposta de benefício); e isto porque, pareceria, em resumo, o animus donandi deve persistir até o aceite do donatário (cf. Alvim, o.c., p. 42-44; é também a posição Clóvis Beviláqua, para quem, "se o doador falecer antes da aceitação por parte do donatário, resolve-se a doação, porque o contrato não chegou a firmar-se" −obs. n. 3 ao art. 1.165; no mesmo sentido, Puig Peña, o.l.c.).
Cabe, pois, ao registrador imobiliário, na tarefa de qualificar o título da doação, verificar se está presente a aceitação pelo donatário −sem o que não há ainda o negócio da doação−, bem como, sempre que isto seja possível pela notícia que tenha o mesmo registrador (notícia que pode, entretanto, faltar-lhe), aferir se a aceitação não se precedeu da morte do doador. Todavia, calha ainda acenar a duas previsões do mesmo Código civil brasileiro: à do art. 542 –"A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal"− e à do art. 543: "Se o donatário for absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação, desde que se trate de doação pura".
Por fim, saliente-se que poderá caracterizar-se aceitação tácita da doação com a prática de atos que sejam incompatíveis com sua repulsa (assim, neste exemplo de Agostinho Alvim, p. 46: o pagamento, pelo donatário, de tributos referentes ao imóvel objeto da doação). Não parece, contudo, que essa forma de aceitação possa ser admitida diretamente pelo registrador, senão que reclamaria a via jurisdicional para seu reconhecimento, até porque poderia o donatário alegar e provar diversa intenção com o pagamento tributário em pauta.