Registro da dação em pagamento

(da série Registros sobre Registros, n. 325) 

                               Des. Ricardo Dip

 

1.059.           O item 31 do inciso I do art. 167 da Lei brasileira 6.015, de 1973, prevê o registro stricto sensu da dação em pagamento, que é uma causa extintiva de obrigação, por meio de prestação diversa da exigível.

Os vínculos obrigacionais −de maneira particular, os contratuais− extinguem-se, de forma rotineira, pela execução pactuada entre os contratantes. Mas há outras formas de exoneração desses vínculos, como o sejam a compensação, a novação, a remissão, a confusão, a prescrição, a consignação em pagamento… e a dação em pagamento (cf., a propósito, brevitatis causa, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, 3.ed., Almedina, 1979, p. 790).

A dação em pagamento vem referida no vigente Código civil nacional (arts. 356 a 359), sendo seus requisitos (i) a preexistência de uma obrigação, (ii) a entrega efetiva e atual de uma coisa diversa da devida −ou a prestação de um fato diferente do cumprimento pactuado, e (iii) o consentimento do credor (veja-se Guillermo Borda, Manual de obligaciones, Buenos Aires, 6.ed., Perrot, 1975, p. 358-359).

Esse meio exonerador do liame obrigacional já era conhecido do direito romano, voltando-se a medida −nomeada como datio in solūtum− a suprir a escassez monetária. Disse a respeito Álvaro D'Ors que a iliquidez pecuniária levou a que se autorizasse o pagamento de dívidas monetárias mediante a entrega de imóveis (aestimatio possessionisin Derecho privado romano, Pamplona, 9.ed., Eunsa, 1997, p. 163, § 114, nota 1).

Tal se extrai também da normativa brasileira em vigor, a dação em pagamento distingue-se das obrigações de prestação alternativa, porque estas últimas pressupõem um ajuste primitivo −ainda que em caráter supletório− quanto às prestações possíveis, ao passo em que, na dação em pagamento, o acordo das partes acerca da prestação inovadora é coevo ao cumprimento da obrigação. Lê-se no Código civil brasileiro: "O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida" (art. 356), e, com isto, o direito brasileiro afeiçoa-se ao que é regra nas legislações contemporâneas (cf. Almeida Costa, p. 792). Serpa Lopes disse, a propósito, que uma diferença entre a dação em pagamento e os contratos primigênios (p.ex., compra e venda, permuta) está em que estes são obrigatórios −ou seja, instituem uma relação obrigacional−, e a dação, ao revés, tem natureza liberatória (Tratado dos registos públicos, Rio de Janeiro – São Paulo, Freitas Bastos, 1960, vol. III, item 559, p. 400).

1.060.          Por dois fundamentos parece relevante dividir a dação em pagamento.

Primeiro, classificando-a em dação executória (ou dação em cumprimento) e em dação em função da execução (ou em função do cumprimento). A dação em cumprimento corresponde ao quadro comum em que uma prestação diversa da fixada no contrato das partes põe termo à relação obrigacional; é a esta que, propriamente, cabe o nome datio in solūtum.

A outra, a dação em função do cumprimento, a que se moldaria a denominação datio pro solvendo, vem prevista, p.ex., no Código civil português, como se lê no n. 1 de seu art. 840º: "Se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, este só se extingue quando for satisfeito, e na medida respectiva". Embora a lei brasileira em vigor não contemple, de maneira expressa, a datio pro solvendo, não parece que se possa excluir sua viabilidade jurídica entre nós, cabendo às partes o ajuste financeiro −para mais ou para menos do valor obtido com a coisa dada− em vista da efetiva conclusão do liame obrigacional.

A outra classificação diz respeito ao objeto da dação, vale dizer, aos bens nela envolvidos. Numa primeira hipótese, substitui-se a prestação contratada por dinheiro (rem pro pecunia); noutra, substitui-se uma coisa por outra (rem pro re); numa terceira hipótese: a substituição dá-se por uma prestação de fato (rem pro facto); por último, pode ocorrer que a prestação substituída seja de dinheiro por uma coisa (pecuniam pro re).

A hipótese de substituição por dinheiro parece admissível com a vigência do Código civil de 2005, embora não o fosse no Código anterior, como se lia em seu art. 995: "O credor pode consentir em receber coisa que não seja dinheiro, em substituição da prestação que lhe era devida" (veja-se Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro, São Paulo, 9.ed., Saraiva, 2012, vol. 2, p. 328, reportando-se a Sílvio Venosa; o texto do art. 356 do Código em vigor −repete-se: "O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida"− expungiu a vedação do Código precedente quanto à prestação pecuniária).

1.060.            A Lei 6.015 diz evidentemente mais do que o devido na previsão do registro da dação em pagamento. Em rigor, caberia dizer que se registra a dação de imóvel em pagamento.

Uma vez que esteja determinado o preço da coisa dada em pagamento −a lei não fala na prestação de fato, mas não se pode excluí-la, tratando-a como o caso exigir singularmente−, "as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda", de maneira que se exigirá a escritura pública quando aquele preço superar "trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País" (art. 108, in fine, do Código civil) e a observância do quanto aplicável às vendas entre ascendentes e descendentes (art. 496 do mesmo Código), conforme já ensinara Serpa Lopes ao tempo da legislação civil anterior (o.v.c., item 560).

Interessa ainda neste capítulo da datio in solūtum considerar o tema do registro da promessa de dação de imóvel em pagamento.

A discussão gira em torno da possível aplicação ampliada do previsto no art. 357 do Código civil em vigor: "Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda". Serpa Lopes tratou da matéria, à luz do disposto no art. 996 do Código civil de 1916 −texto símile ao do atual referido art. 357. Concluiu nosso autor em que não caberia o registro dessa promessa, mas, com sua costumeira honestidade intelectual, trouxe a público posição divergente da Procuradoria Geral do Distrito federal e o entendimento adotado pelo Tribunal de Apelação, conclusivo em que caberia o registro da promessa de dação em pagamento (cf. o.v.c., p. 243-253).

A matéria é controversa, admite-se. Mas, ainda recentemente, quando quis acolher o registro da promessa de permuta −a que também se aplicam "as disposições referentes à compra e venda" (art. 533 do Código civil)−, o legislador acrescentou explícita menção a essa promessa mediante a Lei 14.382/2022 (de 27-6). Pareceria prudente observar a lógica da previsão legislativa, preferindo-se, neste passo, a posição sustentada por Serpa Lopes: promessa de dação de imóvel em pagamento não é, por agora, suscetível de registro.