(da série Registros sobre registros n. 215)
Des. Ricardo Dip
853. Passando à margem da orientação de Orlando Gomes, para quem o direito real de uso não é um efeito do desmembramento dominial, figura apenas invocada para torná-lo mais compreensível (Direitos reais, 222), cabe aqui um brevíssimo excurso, para destacar uma observação de Teixeira de Freitas sobre o desdobramento dominial de atributos que, em seu entender, propicia o usufruto e o uso, é bem verdade, mas, assim o disse esse grande jurista, não enseja apenas direitos reais. Depois de mencionar que já o mesmo vocábulo usufruto indica uma desmembração da propriedade (usus + fructus, atributos dominiais), Teixeira de Freitas referiu, no entanto, que pode haver uso e fruto (fruição) sem o desdobramento jurídico do domínio, “como acontece na locação, que só dá ao locatário um direito pessoal”. E, pode talvez acrescentar-se, sem moléstia de seu entendimento, que isso também ocorre no comodato.
Numa perspectiva externa, a do fenômeno que se exprime e percebe-se, o usus está faticamente destacado do domínio e isso de modo igual no usufruto, na locação e no comodato. O que os distingue não é, pois, o fato do uso (nem o é o fato da fruição), mas a valoração jurídica –essencialmente em dependência, neste quadro, com as ordenações positivas.
Dessa maneira, tanto seja adotado o monopólio legal para a caracterização de direitos reais, “os particulares –disse José de Oliveira Ascensão– estão impedidos de criar figuras de natureza real que não foram normativamente prevista” (Direitos reais, 106-II), mas isso, prossegue o autor, não é o mesmo que admitir, de modo algum, um “privilégio legal quanto à enumeração dos direitos reais”, porque a clave decisiva da natureza das relações jurídicas é dada pelo regime legalmente adotado para cada figura e pelo esquema –“universalmente válido”– de repartição de competências entre intérprete e norma: se o intérprete –conclui Ascensão– encontrar numa dada figura “as características essenciais da realidade deverá qualificar esse direito como real, mesmo que o legislador o não o tenha feito expressamente”.
Pode, pois, considerar-se razoável a possibilidade de, no futuro, admitir-se uma distinta valoração jurídica, entre nós, da locação e do comodato, nos quais institutos se avista quanto à res locada, fruída, usada ou dada em comodato, um destino econômico bastante similar. É preciso, além de reavaliar, no direito brasileiro, a natureza dos efeitos contra omnes da locação imobiliária objeto de registro, apreciar, não menos, a utilidade da inscrição do comodato predial, atendendo, talvez, a um seu caráter real (são interpelantes, para concluir este item, as observações de Ascensão –o.c., p. 519-520– em favor do caráter jurídico-real do arrendamento).
854. Antes de examinar o tema do objeto material do direito real de uso, deite-se uma vista d’olhos ao aspecto subjetivo desse direito, a saber, o de considerar quem pode ser seu titular –ou seja, quem pode ser usuário.
Lê-se no caput do art. 1.412 do vigente Código civil brasileiro: “O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família”. Os §§ 1º e 2º do mesmo art. 1.412 versam, respectivamente, o tema das necessidades próprias do usuário e o das necessidades de sua família.
Da só consideração da existência desses dois parágrafos, tratando seguidamente de duas diversas necessidades –uma, a do próprio usuário, outra, a de sua família–, pode extrair-se um reforço à compreensão, já nutrida pelo texto do caput do art. 1.412, de a lei de regência permitir a titularidade do direito de uso por pessoa solteira. Nesse sentido, a doutrina de Arnaldo Rizzardo, para quem a inclusão do atendimento, com o uso, às necessidades familiares é somente uma expansão do direito concedido intuitu personæ (Direito das coisas, 31.3).
É também possível admitir juridicamente a contitularidade do direito de uso, satisfeito, em relação a todos os titulares, o requisito de correspondência do uso da coisa e da percepção de seus frutos conforme as necessidades pessoais de cada qual e as das famílias de cada um.
Controversa, porém, é a extensão desse direito à titularidade de pessoas jurídicas. Rui Pinto Duarte –sobre o fundamento de norma, em Portugal, consonante com a lei brasileira– afirma que da “definição legal e dos seus desenvolvimentos (…) resulta que só as pessoas singulares podem ser titulares dos direitos de uso (…)” (Curso de direitos reais, 2.3.1), dizendo que alguma doutrina italiana se atreve em admitir sejam titulares do direito de uso pessoas coletivas. De maneira contraposta, porém, por sua admissão opinou Pontes de Miranda: “Pessoas jurídicas não têm família. Porém daí não se conclua que só pessoas físicas possam ser usuárias. Argumentos que, noutras épocas, poderiam pesar, hoje seriam fragílimos, dada a quase completa equiparação das pessoas jurídicas às pessoas físicas. Nada obsta a que se dê em uso alguma máquina, prédio ou rio a alguma pessoa jurídica” (Tratado de direito privado, § 2.358-2). A esse entendimento molda-se a doutrina de Arnaldo Rizzardo: “as necessidades que determinam a extensão do uso são aquelas próprias da família, desimportando a qualidade da pessoa beneficiada (…)”. É provável seja essa, por igual, a orientação a que tenda Carlos Roberto Gonçalves, com dizer que “o ato constitutivo do direito real [de uso] possa contemplar, mediante acordo de vontades, ainda outras pessoas, além das indicadas” (Direito civil brasileiro, tomo 5, p. 515).
Sem abreviar uma discussão mais ampla e mais aprofundada dessa controvérsia –aprofundamento e amplitude que não cabem aqui–, parece-me que a posição favorável à viabilidade de o direito real de uso ter pessoa jurídica por titular está, num dado aspecto, forrada de razoabilidade
Todavia, cabe considerar uma distinção feita por Guillermo Borda (Manual de derechos reales, 693), entre a titularidade do usus e a titularidade do fructus. Diz ele, por primeiro, que “no cabe duda alguna de que también las personas jurídicas pueden ser titulares de él [ou seja, do direito de uso]. Ninguna disposición legal, ninguna razón de lógica o de principios, se opone a que una persona jurídica sea usuaria de un inmueble para sus oficinas o de un automóvil”.
Calha que, quanto às necessidades a que se refere a lei em vigor, não se contam as do comércio e as da indústria (cf. Washington de Barros Monteiro, Arnaldo Rizzardo, Carlos Roberto Gonçalves), sendo, pois, de considerar estas ponderações de Guillermo Borda:
“El problema más que a la titularidad del derecho se refiere a la extensión. Hemos dicho ya que el usuario no solamente tiene el goce de la cosa, sino también la facultad de percibir y apropiarse de aquellos frutos indispensables para é o para su familia. ¿Esta atribución la poseen también las personas jurídicas? Puesto que ellas carecen de necesidades naturales que puedan satisfacerse directamente con los frutos obtenidos de la cosa, necesario resulta concluir que las personas jurídicas no tienen facultad para percibir los frutos que pudieron ser, por ejemplo, necesarios para la satisfacción de las necesidades de los miembros o integrantes de la persona jurídica, ya que esta constituye una entidad distinta de sus miembros.
En suma, las personas jurídicas pueden ser titulares de un derecho de uso (…), pero no tienen derecho a los frutos a título de satisfacción de las necesidades de sus integrantes.”
Prosseguiremos.