Do registro do compromisso de compra e venda (imóveis não loteados) - parte final

(da série Registros sobre registros n. 221)

                                                                                                  Des. Ricardo Dip

  1. 869. O nome compromisso e compra e venda (espécie do gênero promessa de contrato ou contrato-promessa) é, por primeiro, o de um título, um negócio bilateral, embora não se desconheça a circunstância de, sob o mesmo nome, cuidar-se de uma promessa unilateral. A mesma designação de promessa de compra a venda também corresponde na lei brasileira, ao menos desde a vigência do Código civil de 2002, ao direito real alistado no inciso VII de seu art. 1.225.

              Assim, o compromisso ou promessa de compra e venda, enquanto contrato, é um negócio jurídico bilateral –e, não menos, denomina o instrumento que o veicula– em que as partes (ou apenas uma delas) se obrigam a celebrar um contrato futuro de compra e venda (vidē Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, n. 63); trata-se de contrato, pois, que tem caráter antecedente de outro, ulterior (mas contrato já definitivo, não de mera tratativa preliminar, como é a hipótese do pré-contrato previsto no art. 27 da Lei 6.766, de 19-12-1979), e que, portanto, reporta-se a uma obrigação de fazer, suscetível de execução coativa (com remissão a Carvalho Santos e a José Manoel de Arruda Alvim, cf. Arnaldo Rizzardo, Direito das coisas, item 33.6.1). Note-se, contudo, que essa promessa ou compromisso de compra e venda é somente uma das espécies desse contrato-promessa, que pode ter por objeto não apenas outros contratos (p.ex., de locação, de sociedade, de compromisso arbitral, etc.), mas também reportar-se a um negócio unilateral (tal o exemplo que indica Rui Alarcão, o de negócio de confirmar-se um ajuste anulável –apud Antunes Varela, o.l.c.).

              São elementos do contrato-promessa, em linha de princípio, os de qualquer outro contrato, a saber, capacidade das partes, consenso, objeto possível e cláusulas acessórias lícitas; e a esses elementos juntam-se os próprios da espécie contratual, porque, de não ser desse modo, não se saberia distinguir em que consistiu essencialmente a obrigação (Vaz Serra, apud Abel Pereira Delgado, Do contrato-promessa, p. 72). Dessa maneira, tratando-se de um compromisso e venda, é de seu fim a formação de um direito a aquisição futura (cf. Carlos Roberto Gonçalves, Direito civil brasileiro, 5, p. 523), de que segue a necessidade de explicitar-se esse escopo negocial, com a determinação objetiva correspondente e, quando a hipótese, com a especialização exigível (é, p.ex., o que se reclama quando o objeto da aquisição futura é um dado bem imóvel).

              Como se disse, esse título de compromisso de compra e venda propicia, segundo a vigente normativa brasileira, a formação de um direito real (inc. VII do art. 1.1225 do Código), direito que, tratando-se de imóvel, exige inscrição no registro predial: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código” (art. 1.227); e, quando tenha por objeto material coisa móvel, só se constitui pela tradição (art. 1.1226), o que não exclui a necessidade de seu registro –em ofício de títulos e documentos– para “surtir efeitos em relação a terceiros” (item 5º do art. 129 da Lei brasileira 6.015, de 31-12-1973); ou seja, há constituição contratual inter partes desde a tradição da coisa móvel, mas seus efeitos erga omnes exigem a inscrição em títulos e documentos, com a publicidade consequente.

  1. 870. O Código civil de 2002 versa, especificamente, sobre a promessa de compra e venda em seus arts. 1.417 e 1.418:

-        art. 1.417: “Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel”;

-        art. 1.418: “O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel”.

              A previsão do referido art. 1.417, indica por supostos específicos da promessa de compra e venda de imóvel a inexistência de cláusula de arrependimento e o registro do título no ofício predial. Esse mesmo dispositivo admite seja o contrato celebrado por instrumento quer público, quer particular, matéria controversa antes da vigência do Código de 2002. Caio Mário da Silva Pereira, p.ex., sustentava que, incluída a promessa no campo dos direitos reais, era de exigir-lhe a forma pública, tanto que suplantado o limite legal do valor previsto no inciso II do art. 134 do Código civil de 1916; daí que concluísse: “Para que dê nascimento ao direito real sobre imóvel, o contrato de promessa de venda deve revestir a forma de escritura pública” (Instituições de direito civil, vol. IV, item 366). Diversamente, Orlando Gomes, sem embargo de observar que a forma do contrato de compromisso de compra e venda, em boa lógica, deveria acompanhar a do correspondente contrato ulterior de compra e venda –o que imporia a instrumentação pública tanto que superado o limite valorativo para o título particular–, disse, porém, que “razões de ordem prática” induziram a dispensa da escritura pública. Nada obstante, reconhece o autor a “insegurança do escrito particular”, que se contrabalança pela exigência de seu registro (cf. Direitos reais, item 242).

              A previsão do art. 1.418 do Código civil de 2002 parece ter posto cobro a uma disputa sobre a eficácia real do compromisso registrado, pois que, com a nova codificação, se admite a alienação do imóvel objeto, a despeito do registro da promessa, certo, no entanto, que a alienação é ineficaz contra o promitente comprador (ou eventual cessionário de seu direito). Ao tempo do Código anterior, sustentou Orlando Gomes que, uma vez registrado, o compromisso de compra e venda, o promitente-vendedor não o poderia alienar (o.c., item 239). A lição de Serpa Lopes, contudo temperava o óbice, porque, embora ensinasse, por primeiro, que “…a inscrição da promessa de compra a venda impede a inscrição de direitos reais posteriores que com ela sejam incompatíveis”, entendia possível que, ao menos, se subordinasse a eficácia dos direitos reais posteriores à da promessa antes inscrita (Tratado dos registros públicos, item 478). Já agora, vigente o Código de 2002, com o registro do título de compromisso, “eventuais novos atos de disposição ou de oneração praticados pelo promitente vendedor em benefício de terceiros, ainda que de boa-fé, são ineficazes frente ao promitente comprador” (Francisco Eduardo Loureiro, in VV.AA., coord. Cezar Peluso, Código civil comentado, comentário ao art. 1.417); em outras palavras, é possível, posteriormente à inscrição do compromisso, o registro de títulos incompatíveis com este último, porquanto não se revelam eficazes contra o promitente comprador (também nesse sentido, Vitor Frederico Kümpel e Carla Modina Ferrari, Tratado notarial e registral, item 3.4.1.9; e, por igual, Arnaldo Rizzardo, o.c., 33.6.5; prima facie em contrário, todavia, Carlos Roberto Gonçalves: “Compete, pois, ao adquirente precaver-se contra expedientes ilícitos de venda sucessiva do mesmo bem, registrando o compromisso no ofício imobiliário” –o.v.c., p. 527).