Do direito real de habitação (primeira parte)

(da série Registros sobre registros n. 217)

                                                           Des. Ricardo Dip

 

858. Contempla a vigente lei brasileira de registros públicos, na parte final do texto do item 7º do inciso de seu art. 167, o registro stricto sensu da habitação, quando não resulte do direito de família. Trata-se, de maneira específica, do direito real de habitação não derivada do direito de família, certo que também este último é direito real, mas não demanda constituir-se pelo registro.

 

Ao lado dessa discriminação no espectro dos direitos reais, cabe ainda distinguir o sentido vulgar de habitação, qual o de ser (i) o ato, (ii) o efeito ou mesmo (iii) o lugar em que se vive, em que se reside, em que se domicilia; o lugar de morada (cf., por todos, Laudelino Freire).

 

O vocábulo habitação provém, diretamente, do latim habitatio, habitationis, que, por sua vez, deriva do verbo latino habito (infinitivo habitare). A conhecida palavra habitat –que nos adveio, de modo imediato, do idioma francês (significando um meio geograficamente próprio à vida de uma espécie animal ou vegetal –vidē Le petit Robert), substantivou-se pela circunstância histórica de que os tratados de botânica e de zoologia do século XVIII se escreviam em latim, adotando-se, pois, a fórmula declinada da terceira pessoa singular do indicativo (cf. Antônio Geraldo da Cunha). Mas se o termo pode estender-se, inferiormente, para atender à morada dos animais brutos e dos vegetais, não menos atende a uma expansão superior: já Fustel de Coulanges, em A cidade antiga, referira-se à crença pagã, entre romanos e gregos, de o céu ser habitação reservada a alguns grandes homens e aos benfeitores da humanidade, e, na Stromata, última parte da trilogia escrita por S.Clemente de Alexandria (150-215), trata-se de três habitações ou moradas espirituais: a do temor de Deus, a da fé e da esperança, e a da caridade da sabedoria. Também se conhecem as habitações ou moradas do castelo interior na celebrada obra de S.Teresa de Ávila (1515-1582).

 

A essas indicações de extremos –inferior e superior– concorre o sentido jurídico da habitação, que, de resto, é um dos agudos problemas políticos e sociais do século XX, em vista do incremento populacional, não somente em relação à taxa vegetativa, mas especialmente pela incorporação urbana do campesinato (a atração “pelas luzes da cidade” –cf. Patricio Randle, Razón de ser del urbanismo). Ainda que em escassa contribuição, o fato é que o direito real de habitação não deixa de ser um subsídio ao enfrentamento da questão habitacional.

 

859. Em Roma, o direito real de habitação –habitatio– contava-se entre as servidões pessoais limitadas (por todos, cf. Jörs-Kunkel, Derecho privado romano, 85-2), sendo controversa, no direito clássico, a questão de confundir-se a habitatio com o usus ou, mais remotamente, com o usufructus (v. Max Kaser, Direito privado romano, § 29), opiniões ambas conciliáveis, porque, tal o assinalou Pietro Bonfante, tanto o uso, quanto a habitação, em substância, “non son che modificazioni dell’usufrutto” (Diritto romano, p. 234). Justiniano solveu a disputa, conferindo à habitatio uma figura especial, com o caráter de servidão pessoal autônoma (vidē Kaser, cit., e Bonfante, Instituciones de derecho romano, § 105).

 

Também se discutiu sobre a possibilidade de a casa, destinada à habitatio, pudesse dar-se em locação. Jörs e Junkel admitindo que o direito de habitação não se limitava à pessoa do titular, estendendo-se a sua família, inclusiva de servos, e a hóspedes, observaram não ser seguro entender que se autorizasse a locação. Alexandre Corrêa e Gaetano Sciascia (Manual de direito romano, I, § 80) ensinaram que “Justiniano, desnaturando o conceito originário [de habitação], admitiu se pudesse alugar a casa, objeto do direito…”. Nesse mesmo sentido, disse Pietro Bonfante que Justiniano, com efeito, reconheceu o direito de locar a casa dada em habitatio, embora não, diversamente, o direito de conceder-lhe o uso gratuito (assim também Lafayette, Direito das coisas, § 113).

 

860. No Brasil, a Lei 1.237, de 24 de setembro de 1864, alistou a habitação, caracterizando-a como ônus real (art. 6º), o que foi reproduzido no § 3º do art. 261 do Decreto 3.453, de 26 de abril de 1865, decreto que regulamentou a referida Lei 1.237. Meses após a implantação militar da república, editou-se o Decreto 370/1890 (de 2-5), que, revogando de maneira expressa (art. 408) a Lei 1.237 e o Decreto 3.453, reafirmou, no entanto, ser a habitação um ônus real (§ 4º do art. 261).

 

Trata-se aí de simples referências legislativas à admissibilidade da habitação e de seu caráter real, mas, assim o observou Clóvis Beviláqua, o conteúdo e a disciplina da habitatio eram entre nós recrutados, antes do Código civil de 1916, no direito romano. E foi assim que firmou o Conselheiro Lafayette um sumário do instituto, dizendo ser a habitação um direito real de morar e residir em casa alheia, assemelhado ao uso e aproximado do usufruto, dos quais, contudo, cabe distinguir-se, constituindo-se e extinguindo-se pelos mesmos modos do usufruto e, em geral, subordinado às mesmas leis (o.c., § 113).

 

O Código brasileiro de Beviláqua incluiu o instituto em três artigos, na sequência do tratamento legislativo concedido ao usufruto e ao uso. Lia-se no art. 746 desse Código: “Quando o uso consistir no direito de habitar gratuitamente casa alheia, o titular deste direito não a pode alugar, nem emprestar, mas simplesmente ocupá-la com sua família”.

 

861. Com essa previsão, o Código acompanhou a versão clássica da habitatio romana quanto a inibir a locação da casa objeto do direito –“o titular deste não a pode alugar”– e, por igual, seu empréstimo; vale dizer, que não pode o titular da habitatio transferir a posse direta do imóvel a título quer oneroso, quer gratuito, assim como lhe é defeso ceder o próprio direito de habitação.

 

A expressa indicação da finalidade de moradia –a cumprir pelo titular do direito de habitação e por sua família (cf. a parte final do art. 746 do Código)– implica, no plano objetivo, negar possa “o habitador empregar a cada para estabelecimento de indústria ou comércio, se nela não habita” (cf. Clóvis Beviláqua, Carvalho Santos; a contrario sensu, habitando-a, poderiam, em princípio, admitir-se atividades locais de indústria e comércio).

 

No aspecto subjetivo, a norma do art. 746 do Código civil brasileiro de 1916 –referindo-se à ocupação do imóvel pelo titular do direito e por sua família– exclui “a possibilidade de poder o titular receber hóspedes gratuitos, desde que sejam considerado, por tal fato, co-participantes do uso da casa…” (Carvalho Santos); não parece vedar-se, pois, a hospedagem ocasional, e cabe ir além, pois o mesmo Carvalho Santos ensinou que pode ser maior a extensão da habitatio, “se assim tiver sido convencionado, ou assim o exigirem as condições sociais do habitador”, e rematou: “Pelo que será mais extenso se o titular deve receber hóspedes”, seja, portanto, em virtude do ajuste institutivo, seja em razão das necessidades do titular da habitatio e de sua família; também quanto aos cômodos de casa que possam ocupar-se cabe aferir as necessidades e a manifestação de vontade do proprietário do imóvel. No mesmo sentido, o Código civil argentino, depois de prever que “el uso y el derecho de habitación son regidos por los títulos que los han constituido…” (art. 2.592), acrescenta: “El uso y la habitación se limitan a las necesidades personales del usuario, o del habitador y su familia, según su condición social” (art. 2.953).

 

Dispôs ainda o Código brasileiro de 1916 que, a exemplo do antes nele já previsto quanto ao usus (art. 745), ao direito real de habitação se aplicassem “as disposições concernentes ao usufruto” (art. 748).

 

Vejamos, a seguir, como o assunto foi tratado –ou mais exatamente, reproduzido– no Código civil brasileiro de 2002, detendo-nos um tanto no tema da aferição das necessidades do habitador para contemplar a extensão da habitatio.