(da série Registros sobre registros n. 219)
Des. Ricardo Dip
865. A lei 6.015 alista entre os títulos suscetíveis de registro em sentido estrito as “rendas constituídas sobre imóveis ou a eles vinculadas por disposição de última vontade” (n. 8 do inc. I do art. 167).
Consistem essas rendas em um produto pecuniário, objeto de prestação periódica, que resulta da entrega de dado capital –para o que aqui interessa, a entrega de um imóvel– a uma pessoa, designada rendeiro ou censuário, a quem se impõe a prestação (cânon) em benefício seja do anterior proprietário desse imóvel (censuísta ou rentista), seja de terceiro.
De maneira mais concisa, essas rendas, enquanto constituídas sobre imóvel, definiu-as Caio Mário da Silva Pereira ocorrem quando “uma pessoa entrega um imóvel a outra, com o encargo de lhe fornecer a ou a terceiro uma renda periódica” (Instituições de direito civil, IV, item 345). Ou ainda, em palavras de Carvalho Santos, consistem as rendas “na alienação do capital para obterem-se (…) prestações periódicas” (Código civil brasileiro interpretado, vol. XIX, p. 182).
Trata-se, portanto, de uma alienação do capital em compensação da renda contratada, assim se lia na parte final do art. 1.426 do Código civil brasileiro de 1916: “Os bens dados em compensação da renda caem, desde a tradição, no domínio da pessoa que por aquela se obrigou” (o itálico não é do original). Essa translação dominial é da essência desse instituto das rendas (Carvalho Santos), e, no sistema adotado pelo Código de 1916, demandava ou a tradição (quando seu objeto fosse dinheiro) ou a transcrição, se se cuidasse de imóvel, transcrição essa exigida ainda quando a renda se constituísse por meio de testamento (Clóvis Beviláqua).
Ladeada aqui a discussão doutrinária acerca da natureza real ou meramente pessoal das rendas constituídas sobre dinheiro ou imóvel (cf., brevitatis causa, Orlando Gomes, Direitos reais, item 228), o fato é que o Código civil brasileiro anterior assim os arrolava, com esse status jurídico-real (inc. IV do art. 674), admitindo-se, quanto aos imóveis, constituir-se sob duas formas: a do censo reservativo e a do censo consignativo. Aquele, o reservativo, por meio da alienação do imóvel, com a reserva do direito de percepção de um cânon anual (ou pensão), que o Código vedou pudesse ser perpétuo; bem se vê que se trata, em suma, da venda de um imóvel a prestação, como fez ver Morell y Terry, com a garantia de seu resgate pelo alienante (o censuísta). O outro censo, o consignativo, consiste em o proprietário do imóvel onerá-lo, obrigando-se ao pagamento do cânon, em correspondência com o capital que recebera do censuário ou rendeiro; daí que esse censo se acerque da figura da hipoteca (Morell y Terry), e que ambas as formas pareçam contornos da antiga rígida proibição da usura (cf. Cláudio Luiz Bueno de Godoy, no Código civil comentado, sob a coordenação de Cezar Peluso, p. 766).
O instituto da renda tem por ascendentes os censos imobiliários medievais, embora, ao menos em alguns casos, o gravame no Medievo não pesasse sobre o imóvel, mas sobre a prestação dos cidadãos (direito municipal) ou dos vassalos (direito senhorial; cf. Wolff).
866. O Código civil brasileiro de 2002 já não enunciou a renda constituída sobre imóvel na lista dos direitos reais (cf. art. 1.225).
A doutrina amplamente prevalecente é no sentido de que, à míngua de constar do rol desse art. 1.225 do Código civil, a renda constituída sobre imóvel é apenas “um simples contrato” (Carlos Alberto Dabus Maluf, na atualização do Curso de direito civil de Washington Barros Monteiro, vol. III, p. 322), que, como tal –ou seja, com transcendência jurídico-real– já não pode ser criado na vigência do Código brasileiro de 2002 (Francisco Eduardo Loureiro; não diversamente, Arnaldo Rizzardo, no Direito das coisas, item 34.1, e José Manoel de Arruda Alvim, Comentários ao Código civil brasileiro, vol. XI, tomo I, item 5.6, in fine).
A matéria, de toda a sorte, foi disciplinada pelo atual Código civil nos arts. 803 a 813, aqui merecendo consideração dois preceitos, o do art. 807 (“O contrato de constituição de renda requer escritura pública”) e o do art. 809: “Os bens dados em compensação de renda caem, desde a tradição, no domínio da pessoa que por aquela se obrigou”.
Quanto ao primeiro desses dispositivos, tenha-se em conta que o Código, afirmando tenha a renda objeto caráter de contrato (vocábulo que aparece nos arts. 803, 804, 805, 806, 808 e 810), afastou a incidência da norma do art. 108 do mesmo Código –de maneira que a transferência do domínio sobre o imóvel não admitirá, no contrato de renda, o documento particular, ainda quando seu valor não exceda o de 30 vezes o maior salário mínimo vigente no Brasil. Além disso, a reiterada alusão a contrato põe em controvérsia a atual admissão de a renda ser instituída por meio de testamento (cf. Cláudio Luiz Bueno de Godoy, o.c., p. 767, e, em sentido oposto, Carlos Roberto Gonçalves, para quem a renda, “mesmo quando constituída por testamento não perde o caráter contratual” –Direito civil brasileiro, vol. 3, p. 543; nessa linha, cf. o art. 1.926 do Código: “Se o legado consistir em renda vitalícia, etc.”; averbe-se ainda que o mesmo Carlos Roberto Gonçalves entende ser de renda uma das formas indenitárias –a pensão– previstas no art. 950 do Código: “Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu” –a ênfase gráfica não é do original).
O art. 809 do Código civil, por sua vez, contanto que se expanda, como é de todo cabível, o conceito de tradição para compreender, neste quadro, o de registro stricto sensu, impõe a necessidade da inscrição da renda no ofício imobiliário, porque, sendo a mesma renda um título –especificamente, sob o modo de contrato– para a transferência da propriedade, que, por evidente, é direito real (inc. I do art. 1.225 do Código civil em vigor), é de exigir-lhe o registro correspondente [art. 1.227 do mesmo Código: “Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código”].
Dessa maneira, não se ressentiu, com o advento do Código de 2002, o preceito de registro da renda constituída sobre imóvel tal o constante da Lei 6.015, de 1973 (item 8 do inc. I do art. 167), mas se alterou seu significado normativo. Por agora, o registro do contrato de renda corresponde ao de uma alienação da propriedade, sic et simpliciter; antes, é dizer, ao tempo do Código civil brasileiro de 1916, se a renda inscrita no ofício imobiliário não interditava posteriores alienações do imóvel objeto, com elas, no entanto, seguia juridicamente vívida, transmitida aos adquirentes, a obrigação inaugural celebrada pelo rendeiro. Atualmente, e certo que não se interdita a alienação do imóvel adquirido pelo rendeiro, pelas prestações avençadas não respondem os novos adquirentes, prevendo-se no art. 810 do Código vigente: “Se o rendeiro, ou censuário, deixar de cumprir a obrigação estipulada, poderá o credor da renda acioná-lo, tanto para que lhe pague as prestações atrasadas como para que lhe dê garantias das futuras, sob pena de rescisão do contrato”.