(da série Registros sobre Registros, n. 233)
Des. Ricardo Dip
889. A Lei brasileira 13.986, de 7 de abril de 2020 (inc. VI de seu art. 61), revogou o item 13 do inciso I do art. 167 da Lei 6.015/1973, inciso esse em que se acolhia a cédula de crédito rural como título suscetível de registro stricto sensu.
Já se avistava, com efeito, desde a segunda metade do século XX –e, no Brasil, significativa, nessa linha tendencial, foi a Lei 11.076, de 19 de dezembro de 2004–, a agregação da disciplina dos títulos do agronegócio. Observou, a propósito, Fábio Ulhoa Coelho, que, com apoio nos estudos de John Davis e Ray Goldberg, da Universidade de Harvard, o modelo de fragmentação tripartite da economia, a saber: setor primário (agricultura, pecuária, extrativismo), secundário (indústria) e terciário (comércio e serviços), passou a concorrer e mesmo a, em parte, substituir-se por um novo “parâmetro conceitual”, com que se buscava abranger, de maneira sistêmica, “todas as atividades econômicas ligadas aos produtos agrícolas (produção de insumos, cultivo, armazenagem, financiamento, certificação, industrialização, comercialização, etc.)” (Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2001, vol. I, p. 510).
Exemplo disso, como ficou dito, foi, entre nós, a Lei 11.076, de 2004, que versou, de modo conjunto, do certificado de depósito agropecuário –CDA, o warrant agropecuário –WA, o certificado de direitos creditórios do agronegócio –Cdca, a letra de crédito do agronegócio –lCA e o certificado de recebíveis do agronegócio –CRA, a eles juntando-se, ainda, a cédula de produto rural -CPR, objeto esta da Lei 8.929, de 22 de agosto de 1994.
A referida Lei 13.986, instituiu a cédula imobiliária rural (CIR), dando prevalência ao interesse da cadeia econômica integral das atividades do agronegócio, e, como reflexo dessa escolha preferencial, secundarizou a atração registrária quanto aos títulos que, dentro desse capítulo do agronegócio, pudessem acorrer ao ofício imobiliário. Daí que a cédula imobiliária rural, para cuja emissão se legitima a “pessoa natural ou jurídica, que houver constituído patrimônio rural em afetação” (art. 18 da Lei 13.986), seja suscetível de registro (ou de depósito) “em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou depósito centralizado de ativos financeiros e de valores mobiliários, nos termos da Lei n. 12.810, de 15 de maio de 2013”.
890. Diversamente, contudo, manteve-se alinhada ao sistema do paradigma conceitual tripartido dos setores econômicos a previsão de registro stricto sensu da cédula de crédito industrial (CCI).
Tanto quanto o título de crédito comercial (objeto da Lei 6.840, de 3-11-1980, que previu aplicar-se a esse título a normativa do Decreto-lei 413/1969, de 9-1), a cédula de crédito industrial visa a garantir, em contrato de mútuo, o financiamento, em seu caso: à indústria; na hipótese da cédula de crédito comercial, ao comércio. Quando tenha o ajuste garantias de fiança ou de aval, expede-se uma nota –a nota de crédito industrial ou comercial; o art. 15 do Decreto-lei 413 conceitua a primeira: “A nota de crédito industrial é promessa de pagamento em dinheiro, sem garantia real”. Quando ao contrato, entretanto, concorra uma garantia real –hipoteca, penhor, alienação fiduciária–, emite-se uma cédula de crédito, que assim define o art. 9º do Decreto-lei 413: “A cédula de crédito industrial e promessa de pagamento em dinheiro, com garantia real, cedularmente constituída”, cédula que pode ser hipotecária, pignoratícia ou fiduciária, conforme se lê no art. 19 do mesmo referido Decreto-lei: “A cédula de crédito industrial pode ser garantida por: I - Penhor cedular. II - Alienação fiduciária. III - Hipoteca cedular”.
Assinalável é a circunstância de que a normativa, impondo o registro da cédula de crédito industrial (art. 29 do Decreto-lei 413: “A cédula de crédito industrial somente vale contra terceiros desde a data da inscrição. Antes da inscrição, a cédula obriga apenas seus signatários”), abrangendo, embora, hipótese em que a garantia do crédito recaia sobre coisas móveis, prevê que o registro se faça em ofício predial: “De acordo com a natureza da garantia constituída, a cédula de crédito industrial inscreve-se no Cartório de Registro de Imóveis da circunscrição do local de situação dos bens objeto do penhor cedular, da alienação fiduciária, ou em que esteja localizado o imóvel hipotecado” (art. 30).
Dessa maneira, por a cédula de crédito industrial pignoratícia –título representativo do penhor industrial com garantia real– compreender, nos termos do art. 1.447 do vigente Código civil brasileiro, “máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais, utilizados na indústria; sal e bens destinados à exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados; matérias-primas e produtos industrializados” –bens móveis, pois–, sua inscrição destinou-se ao livro de registro auxiliar (livro 3), conforme o prevê o inciso II do art. 178 da Lei 6.015, de 1973.
Quando, contudo, a cédula de crédito industrial tiver por objeto bem imóvel, seu registro far-se-á no livro 3 e também na matrícula do imóvel correspondente (inc. II do art. 178 da Lei 6.015).
Os requisitos da cédula de crédito industrial –e que, pois, dever sem objeto de verificação pelo registrador– estão previstos no art. 14 do Decreto-lei 413: (i) sua denominação, que se exige, portanto, com explicitude (cédula de crédito industrial); (ii) a data do pagamento ou, se previsto o pagamento parcelado, suas várias datas; (iii) o nome do credor e cláusula à ordem (ou seja, a autorização do endosso do título); (iv) o valor do crédito garantido, “lançado em algarismos por extenso”, como a forma de sua utilização (industrial); (v) a descrição especializada dos bens objeto do penhor, da alienação fiduciária ou da hipoteca; (vi) a taxa de juros e a referência à comissão de fiscalização, se houver; (vii)
a obrigatoriedade de seguro dos bens; (viii) o lugar do pagamento; (ix) data e lugar da emissão; (x) “assinatura do próprio punho do emitente ou de representante com poderes especiais”. Cabe observar ainda que os bens dados em garantia (incluído o imóvel hipotecado –§4º do art. 14) podem estar descritos em documento à parte –extraído em duas vias, com assinaturas do emitente e do credor–, “fazendo-se, na cédula, menção a essa circunstância, logo após a indicação do grau do penhor ou da hipoteca, da alienação fiduciária e de seu valor global” (§ 2º do art. 14).
A norma do § 5º do art. 14 desse Decreto-lei 413 permite que “a especificação dos imóveis hipotecados, pela descrição pormenorizada, poderá ser substituída pela anexação à cédula de seus respectivos títulos de propriedade” (talvez deva entender-se –ou ainda melhor: estender-se– para admitir caiba também a anexação de certificado a matrícula do imóvel).
A apresentação de documento acessório, seja na hipótese do § 2º do art. 14, seja no da anexação prevista no § 5º do mesmo artigo, deve referir-se expressamente na cédula.
Ainda que se devam acomodar à metódica do fólio real instituída com a Lei brasileira 6.015, devem constar do registro da cédula de crédito industrial os requisitos previstos no art. 32 do Decreto-lei 413: (i) a data e a forma do pagamento do crédito; (ii) “nome do emitente, do financiador e, quando houver, do terceiro prestante da garantia real e do endossatário”; (iii) o valor do crédito e a forma de sua utilização; (iv) o lugar do pagamento; (v) a data e o local da emissão do título, para cuja inscrição o solicitante apresentará
o original da cédula e cópia em impresso idêntico, desta constando a declaração "via não negociável", em linhas paralelas transversais (§1º do art. 32), cópia que o cartório autenticará, tanto que confira sua exatidão (§ 2º do art. 32).
Compete ainda ao registrador verificar se há registro anterior no grau de prioridade que se declarado na cédula, ou se os bens foram objeto de alienação fiduciária, hipóteses em que qualificará negativamente o título (art. 35).