Averbação de separação de dote (primeira parte)

(da série Registros sobre Registros n. 396)

                                                  Des. Ricardo Dip

1.196.  O art. 2.039 do Código civil brasileiro de 2002 previu que «o regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido», norma essa que assinala a preservação da possibilidade jurídica não só de, mediante registro stricto sensu, inscrever-se o dote, mas, controversamente, o de averbar-se a separação do mesmo dote, nos termos do que dispõe o item 9º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973.

         Reiteram-se, na sequência, algumas indicações já constantes de nossas explanações anteriores, de modo a que se esclareça a razão de, discutivelmente embora, preservar-se juridicamente possível o averbamento da separação do dote, malgrado faltar no Código civil de 2002 disciplina acerca do tema.

         Nosso Código civil de 1916 tratava largamente do instituto do dote −arts. 278 a 309−, instituto, no entanto, que não foi versado específico no Código de 2002. Essa lacuna muito provavelmente deva atribuir-se ao muito raro acolhimento do dote nos costumes brasileiros.

         Em tempos mais remotos, o dote era justificado como uma sorte de compensação patrimonial relacionada à perda dos direitos sucessórios da mulher, pois que esta se afastava de sua família paterna, integrando-se na família do marido. Adiante, contudo, passou a entender-se que o dote consistia numa aportação destinada a satisfazer as despesas do novo lar doméstico (cf. Jörs e Kunkel. Derecho privado romano, 1965, p. 403). E é com essa perspectiva que Alexandre Corrêa e Gaetano Sciascia definiram o instituto: «O dote é um conjunto de bens que a mulher, ou outrem por ela, traz ao marido para este sustentar os ônus do matrimônio» (Manual de direito romano, 1953, vol. I, § 57). Não diversamente assentou Pietro Bonfante: «A relação dotal (dos ou causa dotis) justifica a aquisição dos bens transmitidos pela mulher ao marido com o fim de sustentar os gravames do matrimônio (ad sustinenda onera matrimonii)» (Instituciones de derecho romano, s.d., p. 202).

         Esse aspecto econômico do dote −onera matrimonii− não é incompatível com uma concausa de natureza religiosa, como fez ver Ortolan (Histoire de la législation romaine, 1884, p. 598), destacando «l’importance, de l’union intime de la religion avec le droit civil des Romains», marcadamente a teoria das coisas sagradas (res sacræ) de cada família, com seu culto privado −o culto dos deuses do lar: era mesmo um dever de piedade (cf. Fritz Schulz, Princípios do direito romano, 2020, p. 106, nota 665, no vernáculo de Josué Modesto Passos).

              Além dessas duas características −econômica e religiosa−, o dote ainda possuía uma função de natureza moral: a de confirmar o que se entendia ser a honorabilidade da união (affectio maritalis; Jean Gaudemet, Le mariage en Occident, 2012, p. 63) observou que «la constitution d’un dot permet aussi de distinguer le mariage du concubinat».

         Daí que, consequentemente, nada obstante o dote seja uma instituição jurídica, é antes e mais do que isso, «una institución social de profundo arraigo» (José Luis Lacruz Berdejo, Derecho de familia -El matrimonio y su economía, 2011, p. 327).

         Como já se disse, o Código civil brasileiro de 2002 não tem uma disciplina específica do dote. Isso acarretou a disputa acerca da possibilidade subsistente de sua contratação e de suas características.

         Nosso Código civil anterior, o de 1916, teve um mérito singularíssimo: o de preservar, com sábio realismo, larga parte dos costumes então entre nós já experienciados. O maior de nossos iusfilósofos, José Pedro Galvão de Sousa, observou, a propósito:  «…é curioso notar como o direito civil brasileiro se conservou mais ligado ao direito histórico, isto é, ao velho direito português, fonte principal da obra produzida por Clóvis Beviláqua, cujo projeto encontrou, na Comissão Revisora, um ardoroso adepto da tradição em Andrade Figueira, que procurou reforçar a fidelidade ao direito histórico e se opôs decididamente às inovações radicais» (A historicidade do direito e a elaboração legislativa, citado na versão das obras reunidas Direito e política, 2020, vol. I,  p. 136).

         Reiteremos o que já indicamos em anterior exposição desta série:  «foi graças a essa virtuosa nota de historicidade que sobreviveu, frutuosamente, nosso Código civil anterior, afastando-se do fascínio do individualismo jurídico que, mercê da expansão do liberalismo, vitoriava-se em estendida parcela do mundo do século XIX. Deve-se isto a grandes civilistas brasileiros, disse José Pedro, mencionando os nomes de Beviláqua, Teixeira de Freitas, Lafayette e Lacerda de Almeida, aos quais <nunca faltou o senso da historicidade, quer na interpretação do direito vigente, quer na atuação pessoal renovadora que, em maior ou menor proporção lhe é dado exercer, traçando rumos doutrinários>» (o.c., p. 136).

         O Código de Beviláqua −é dizer, nosso Código civil de 1916− calcara o instituto do dote na concepção romana e na forma como o regime dotal (sem embargo de seu pouco uso entre nós) fora recebido no Brasil. Assim, nesse antigo e valioso nosso Código, o dote consiste na parcela de bens que a mulher −ou terceiro, por ela− transfere ao marido, com a finalidade de que o rendimento desses bens favoreça a sustentação dos encargos do matrimônio, posta a condição de que os mesmos bens (ou seu valor) devam restituir-se à mulher após a dissolução da sociedade conjugal.

              O dote é, nesse quadro, um contrato, exigindo escritura notarial (inc. II do art. 256 do Cód.civ. de 1916) precedente ao casamento, e a determinação e estimativa dos bens, com declaração explícita de subordinação desses bens ao regime dotal: «É da essência do regime dotal descreverem-se e estimarem-se cada um de per si, na escritura antenupcial (art. 256), os bens, que constituem o dote, com expressa declaração de que a este regime ficam sujeitos» (art. 278).

         Duas questões merecem referir-se neste passo, ainda uma vez rememorando-se o que já versamos em antecedente explanação desta série «Registros sobre Registros»:

•        pode um contrato de dote, relativo a casamento celebrado em tempo anterior ao Código civil brasileiro de 2002, ser registrado no ofício imobiliário?

•        Pode contratar-se e registrar-se um ajuste de dote realizado após a vigência desse mesmo Código de 2002?

         Essa primeira questão parece responder-se com o disposto no já antes aqui mencionado art. 2.039 do Código civil em vigor: «O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido». É que, como visto, o regime dotal era uma das regências matrimoniais de bens disciplinadas pelo Código de 1916.

         A segunda questão, essa havemos de versá-la na próxima exposição, considerando conjuntamente a possibilidade de averbar-se a separação do dote.