(da série Registros sobre Registros n. 395)
Des. Ricardo Dip
1.195. Enuncia a Lei 6.015, de 1973, no item 8º do inciso II de seu art. 167, caber o averbamento «da caução e da cessão fiduciária de direitos reais relativos a imóveis».
Esses institutos −caução e cessão fiduciária referentes a alienações de imóveis− vêm alistados no art. 17 da Lei 9.514/1997 (de 20-11):
«As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por:
I - hipoteca;
II - cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis;
III - caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis;
IV - alienação fiduciária de coisa imóvel.»
Em seu texto original, a Lei 6.015 previa o averbamento dessas aqui versadas duas modalidades operacionais do financiamento imobiliário −caução e cessão fiduciária− sem se referir, entretanto, ao caráter real dos direitos. Lia-se, então, serem averbáveis as discutidas caução e cessão fiduciária de «direitos relativos a imóveis». A Medida provisória 1.085, de 27 de dezembro de 2021, e, adiante, a Lei 14.382/2002 (de 27-6) −lei em que se converteu a mencionada Medida 1.085−, acrescentaram o adjetivo «reais» para aumentar a compreensão, e, pois, restringir a extensão, do termo «direitos relativos a imóveis».
Não se compreendem bem os motivos pelos quais se deu esse acréscimo redacional. Primeiro, porque já havia indicação normativa expressa quanto ao caráter real da caução e da cessão fiduciária tanto que reportáveis à alienação de imóveis. Depois, porque, como adiante se dirá, porque não é o critério da natureza jurídica dos ajustes, mas o de seu objeto imobiliário o que haveria de nortear a escolha da espécie de registro público a que convergir o ato específico da inscrição correspondente.
Já, com efeito, mediante o Decreto-lei 70, de 21 de novembro de 1966, a caução e a cessão fiduciária de direitos resultantes de alienação imobiliária tiveram afirmada sua natureza jurídico-real. Assim dispôs seu art. 43:
«Os empréstimos destinados ao financiamento da construção ou da venda de unidades mobiliárias poderão ser garantidos pela caução, cessão parcial ou cessão fiduciária dos direitos decorrentes de alienação de imóveis, aplicando-se, no que couber, o disposto nos parágrafos primeiro e segundo do artigo 22 da Lei número 4.864, de 29 de novembro de 1965.
Parágrafo único. As garantias a que se refere este artigo constituem direitos reais sobre os respectivos imóveis».
Na sequência, previu-se no mesmo Decreto-lei 70: «São passíveis de inscrição, nos Cartórios do Registro de Imóveis, os contratos a que se refere o artigo 43 (…)».
Não diversamente, o § 1º do art. 17 da Lei 9.514 enuncia: «As garantias a que se referem os incisos II, III e IV deste artigo constituem direito real sobre os respectivos objetos» −os aludidos incisos II e III dizem respeito à caução e à cessão fiduciária.
Dessa maneira, tendo-se indicado expressamente, no referido Decreto-lei 70 e na Lei 4.591, o caráter jurídico-real da caução e da cessão fiduciária relativas a alienações de imóveis, nenhuma aparenta ser a necessidade −sequer mesmo a conveniência− de acrescentar-se, num texto, o da regulativa dos registros públicos, que, pois, concerne a uma disciplina procedimental e não substantiva, essa referência à natureza real dos mencionados ajustes.
É bem verdade que, para distinguir, de um lado, a cessão fiduciária, e, de outro, a alienação fiduciária, entra em cena a ideia de direito de crédito, assim o faz ver esta passagem de Melhim Nahmen Chalub, em seu Alienação fiduciária -Negócio fiduciário (ed. Gen -Forense, 5.ed., Rio de Janeiro, 2017, p. 379):
«A cessão fiduciária e a alienação fiduciária são institutos similares, exercendo a mesma função de garantia do crédito e alicerçando-se nos mesmos fundamentos; enquanto na alienação o objeto do contrato é a transmissão de um bem (móvel ou imóvel), na cessão o objeto é a transmissão de um direito creditório; em ambas, a transmissão do domínio fiduciário ou da titularidade fiduciária subsiste enquanto perdurar a dívida garantida.»
Todavia, ainda que se aponte, com a cessão fiduciária, a «transmissão de um direito creditório», o fato é que as normas substantivas de regência do tema já assinalavam sua natureza real correspondente.
O que por vezes se implicita nesse campo de discussão é a tópica de o registro de imóveis ser propício ao acolhimento de direitos reais. Há nisso, entretanto, um dúplice equívoco; o primeiro está em que, salvo quanto a inscrições declarativas, o registro imobiliário constitui os direitos reais a partir dos títulos que acolhe; dizer que um dado ajuste pode levar a um direito real nada soluciona quanto ao locus registral que lhe corresponde. Mas, de toda a sorte, por que o fato de um direito ser real afastaria, por exemplo, a preferência ou concurso competencial do ofício de títulos e documentos?
Segundo: o que aí define a competência registrária não é a natureza jurídica do direito veiculado com a titulação formal, mas, isto sim, seu objeto material: se os pactos concernem a móveis, competência do registro de títulos e documentos; se dizem respeito a imóveis, competência do registro imobiliário. Isso nada tem a ver com a creditoriedade ou realidade da natureza dos ajustes.
Interessante, a propósito, é o estudo a que se lançaram Naila Khuri e Sérgio Jacomino («Caução e cessão fiduciária», in Observatório do registro, 4-10-2020), concluindo −acerca da proposta que, depois, veio a redundar no texto novo do item 8º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015− «que a mudança sugerida é perfeitamente despicienda por absoluto desconhecimento dos fundamentos do dispositivo. Se algo pudesse ser alterado e isto seria o deslocamento do dispositivo para o quadrante do art. 167, inciso I, da LRP que trata das hipóteses de registro em sentido estrito».
É muitíssimo provável ter razão esses autores: as referidas caução e cessão fiduciária deveriam, com efeito, atrair a prática de registro stricto sensu e não de averbação.