Averbação da mudança de nome (segunda parte)

         (da série Registros sobre Registros n. 390)

                                                  Des. Ricardo Dip

1.187.  Prossigamos no tema da averbação, no registro imobiliário, da mudança de nome, objeto do item 5º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, que dispõe, textualmente, sobre o averbamento «da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas pessoas nele interessadas».

         Ao tempo inaugural da Lei 6.015 a disposição referente à mudança de prenome apontava em sentido tendencialmente restritivo, como se lia no caput de seu art. 58: «O prenome será imutável». Em 1998, alterou-se a redação desse dispositivo, passando a enunciar-se: «O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios» (cf. a Lei 9.708, de 18-11-de 1998).

         Antes mesmo de 1998, com escora em que o registro público haveria de espelhar a realidade, admitia frequentemente a jurisprudência a retificação do registro de prenome, não só por expansão da norma da primeira parte do antigo parágrafo único do art. 55 da lei (que indicava: «Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores»), admitindo, pois, a correção de eventual erro do registrador civil em inscrever prenome suscetível de ridicularização, mas, além disso, a retificação de uma discordância entre o registro e a realidade das coisas: entendia-se, e isto aparenta razoabilidade, que não se estava a alterar o prenome, senão que se modificava um registro equivocado, quando esse prenome não fosse o do uso social

         A esse entendimento deu acolhida o novo texto −já referido− do caput do art. 58 da Lei 6.015 (nos termos da Lei 9.708), ao admitir a substituição do prenome «por apelidos públicos notórios».         

         Ou seja, a notoriedade pública −comunitária− do uso de um prenome é que ampararia sua substituição, tal que, no aspecto substantivo, prevaleceria a realidade em desfavor da imagem distorcidamente espelhada no registro, e, no aspecto formal, haveriam de considerar-se as provas correspondentes ao uso social do prenome. Vale dizer, a confirmação da objetividade desse uso de que o registro se dissociava. Por outra perspectiva, não se concedia a possibilidade de mudança do prenome de maneira imotivada, é dizer, submetida à só vontade dos interessados (rectius: princípio do mero consentimento).

         Do Supremo Tribunal Federal proveio o câmbio de paradigma nessa matéria, ao acolher-se, por maioria de votos, a ADI 4.275, assim ementada:

«1.     O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero.

2.       A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la.

3.       A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade» (j. 1º-3-2018).

         Nos termos do decidido pelo STF, a autonomia plenária dos interessados, quanto à mudança do prenome, somente se relacionou com o âmbito da «identidade de gênero». Essa Corte assentou um novo direito fundamental −segmentário, como se disse, no aspecto subjetivo−, qual seja o da alteração do prenome (e, por igual, da «classificação de gênero»), permitindo que o pleito se ancore em «autoidentificação», ou seja, mediante o exercício bastante do princípio do consentimento.

         Instalou-se, de fato, um discrimen entre, de um lado, os que, além da situação prevista no art. 56 da Lei 6.015, podem alterar o prenome por meio de simples manifestação de vontade −sendo isso alçado ao status de direito fundamental− e os que, de outro lado, para a mudança do prenome, devem confirmar o uso social dissonante dos assentos registrais.

         Prevê-se no aludido art. 56 da Lei 6.015, que «a pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico» (redação objeto da Lei 14.382, de 27-6-2022).

         Há no § 1º do mesmo art. 56 a previsão de que «a alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença judicial». Topicamente, parece bastante provável que essa norma somente se refira à situação relativa ao caput desse art. 56 (mudança de prenome após a maioridade do interessado), sem abranger a hipótese objeto da referida ADI 4.275, até porque, como ficou dito, segundo a decisão do STF, a pessoa transgênero tem −e por meio de autodeclaração− «direito fundamental subjetivo à alteração do prenome».

         Todavia, o Conselho Nacional de Justiça previu, no §2º do art. 515-D de seu Código do Extrajudicial (com a inclusão determinada em seu Provimento 153, de 26-9-2023): «Para efeito do § 1º do art. 56 da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, é vedada nova alteração extrajudicial do prenome mesmo na hipótese de a anterior alteração ter ocorrido nas hipóteses de pessoas transgênero».

         Há uma constelação de aporias que se põe em cena para o registro quanto a essa mudança de prenome pela só vontade da pessoa interessada. É verdade que a norma do referido art. 515-D do Código do Extrajudicial editado pelo CNJ concede algo em favor da tendencial estabilidade do prenome –para, assim, atender à determinação pessoal e à identidade social de cada pessoa−, mas não se veda, até porque enfrentaria o decidido na ADI 4.275, um campo de interferência autônoma da vontade do interessado. Avistam-se possíveis consequentes dessa exceção, ao largo do tempo, uma vez que não cabe ao registrador aferir a veracidade da declaração de quem se diga incluir-se na categoria de transgênero (i.e., pessoa que se percepciona diversamente de seu sexo biológico).

         Um problema prático que logo se avista é o de que há muitas dezenas de gêneros −ou seja, de autopercepção identitária−, alguns dos quais parecem incompatíveis com a estabilidade registral (no exemplo que aparenta o mais emblemático para o registro: o status das pessoas que se percepcionam num gênero fluido ou gênero variante, que pode ser um, hoje, outro, amanhã). A isso, adicionem-se as situações identitárias relativas à classificação em gênero biológico próximo −este é o quadro das pessoas que renegam da condição humana, afirmando-se animais brutos− ou, ainda mais, refogem à classificação no reino animal, autopercepcionando-se plantas ou minerais (incluídos os objeto de modificação industrial: torre Eiffel, muro de Berlim).

         Prosseguiremos.