(da série Registros sobre Registros n. 389)
Des. Ricardo Dip
1.186. O item 5º do inciso II do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, prevê o averbamento «da alteração do nome por casamento ou por desquite, ou, ainda, de outras circunstâncias que, de qualquer modo, tenham influência no registro ou nas pessoas nele interessadas».
A atribuição e a correspondente assunção de um nome para cada pessoa −vale dizer, a conjunção em unidade de pessoa e nome− é não só um elemento de identidade social, mas algo determinativo no plano pessoal. Rabindranath Capelo de Souza, em seu muito autorizado O direito geral de personalidade, observou que, nas relações humanas –sejam as dos homens consigo próprios, com outras pessoas humanas, com a natureza e com Deus–, «cada homem é um ser em si mesmo e só igual a si mesmo» (p. 244); noutros termos, há uma identidade (por mais inefável que a tenhamos de admitir) da pessoa em si própria e perante todos os demais entes.
Essas características de determinação individual e de identidade nos planos social e político correspondem, mediadas pelo signo consistente em um nome, ao reconhecimento e respeito a uma pessoa –«unidade diferenciada, original e irrepetível» (Capelo de Souza)– e à sua dignidade. Toda pessoa humana, com efeito, é singular, única, irrepetível, e por isso, em lição de Eudaldo Forment, os homens sempre têm uma vida pessoal, e têm biografia, porque sua vida, por ser racional e não bruta, é individual e não genérica; nessa biografia não se trata de considerar as propriedades universais dos homens, senão que os indicativos particulares da vida real de uma pessoa.
Já se deixou dito, com apoio no pensamento de Aristóteles, que as palavras são signos de conceitos, e estes, representação das coisas; de que segue: as palavras dizem relação com as coisas significadas, mediante o conceito intelectual. A palavra –ou nome–, ainda uma vez recorramos a Aristóteles, existe para tornar manifesto o bom e o mal, o justo e o injusto, porque é a comunidade dessas coisas o que constitui a família e o estado, associações naturais. Por isso, a desordenação dos nomes resulta na desordenação social e política. Daí que se veja a boa razão que tem Carlos Alberto Faraco ao dizer, com muita verve, que é necessário um registro –ou livro do tombo de palavras– «porque é inviável que cada um escreva as palavras como bem quiser« (in Norma culta brasileira).
Tal já o referimos noutra parte, aqui convindo recordá-lo, os nomes (nomina) têm sempre alguma relação com as essências (numina) das coisas que eles expressam e significam, ou seja, ainda que, num dado aspecto, os nomes sejam convencionais, eles não são arbitrários. Essa parece ser a principal razão por que a filosofia clássica se inclinou, frequentemente, a começar suas tratativas pela definição nominal –quid significatur per nomen–, assim o observou acertadamente um pensador contemporâneo, Martín Echavarría, em La praxis de la psicología (La Plata: Ucalp, 2009).Isso se explica pelo bom motivo de que ninguém pode designar o que não conhece (nullus potest significare id quod non cognoscit –S.Tomás, S.th., I, q. 13, 10, sed contra).
Não é, porém, inviável uma relação genética do nomen com o numen: p.ex., o nome Adão (no hebraico Adâm) significa homem da terra; outros exemplos: os primeiros romanos denominavam-se quirites e seu direito, quiritário, isso porque Rômulo –um dos legendários gêmeos fundadores de Roma– passou a figurar entre os míticos deuses do paganismo, com o nome de Quirinus; a primeira cidade, Henoc, cidade utópica que Caim fundou, recebeu o nome de seu filho. Outras vezes, aponta-se uma origem religiosa nos nomes: S.Agostinho disse que a própria linguagem teve por motivo a confissão do nome de Deus (Confessiones, V, 1), e uma das possíveis explicações para a origem do nome de Roma é a de esse nome provir de uma antiga divindade fluvial, Rumon; creu-se entre os egípcios que a divindade pagã Ptah era um fundador de nomes (veja-se, a propósito, Lewis Mumford. A cidade na história). Também entre cabalistas há a crença de que os nomes de Deus (para eles, os 72 nomes de Deus) e os dez sefirot (atributos de Deus ou os anjos que representam esses atributos) resultariam de um plano místico do alfabeto hebreu (cf. Julio Meinvielle, De la cábala al progresismo). Ainda outros exemplos: o nome Afrodite origina-se de afros espuma do deus pagão Dionísio (de onde vem que o culto dionisíaco fosse um culto conexo ao uso de drogas e com caráter hermafrodita −«erma» + «afros»: a anulação dos princípios contrários; cf. Ennio Innocenti, La gnosi spuria).
Quando se adquire a determinação individual pelo nome próprio? Manuel Vilhena de Carvalho (Do direito ao nome) ensina que a assunção do nome é contemporânea à exteriorização social da pessoa (p. 94), vale dizer que há uma quase reciprocação de causa e efeito entre a determinação individual e a identificação social e política, de modo que a primeira dá suporte à identidade comunitária, mas é esta quem atualiza aquela. Há, pois, uma razão de familiaridade na origem do nome pessoal, não só quanto a sua eleição, mas, por igual, na sua inauguração comunitária: é na família que nascem os nomes das pessoas, tanto quanto −e bem por isto− que a família é a célula matriz da sociedade. A história mesma, pois, da vida social e política põe em evidência a origem antes social, e só depois política, de direitos «para cuja garantia −estas são palavras de António Sardinha, em A teoria das cortes gerais− o Estado exclusivamente se constitui».
O direito sempre conviveu com essa singularidade vital dos homens, tutelando-a, à partida, pela publicação jurídica, mediante o registro civil, da determinação individual e da identidade social das pessoas: o nome é elemento essencial para o registro de nascimento (vidē n. 4 do art. 54 da Lei 6.015), e esse registro é o fólio nuclear e atrativo de todas as demais inscrições no registro civil das pessoas naturais (cf., brevitatis studio, os arts. 102 e 107 dessa Lei 6.015). Também se exige o nome na extração de instrumentos públicos; entre os requisitos formais das escrituras públicas sempre se alistou o do nome do notário, dos outorgantes, das testemunhas, isso comumente sob pena de invalidade.
Não diversamente, o direito registral imobiliário também se voltou a satisfazer as exigências de determinação individual e de identidade social das pessoas, como ainda agora, na sua estruturação contemporânea, dão exemplo as imposições de atendimento à especialidade subjetiva (que supõe à raiz a determinação do sujeito) e à do fato inscritível (cf., a propósito, o que dispõem os incs. I e II do art. 167 da vigente Lei brasileira de registros públicos –Lei 6.015/1973).
Tratemos de alguns aspectos peculiares acerca da atribuição do nome pessoal no âmbito do registro.
Comecemos por uma concisa referência ao tema dos exônimos e endônimos, assunto de importância vistosa para as notas e os registros. Um nome estrangeiro (p.ex., Iohannes ou Ticius) pode adotar-se ao modo autóctone (i.e., nativo), de sorte que se conserve sua grafia e, muitas vezes, seu som (é o que corresponde ao âmbito dos endônimos), mas pode ocorrer que se alterem grafia e, com isso, frequentemente, o som do nome: assim, Jean Jacques Rousseau, o mitômano célebre por seus devaneios ficcionais, nomeia-se de comum, em Portugal, João Jacobo Rousseau; trata-se aí do gênero do exônimo (ou, de maneira específica, de uma exantropônimo); da mesma sorte: se para designar, no Brasil, a capital da Espanha, grafamos Madrid, temos um caso de endônimo; se, diversamente, usamos o nome Madri (sem o de final), utilizamos um exônimo (de modo específico: um exotopônimo).