(da série Registros sobre registros n. 192)
Des. Ricardo Dip
785. O arresto de segurança –ou arresto de garantia– é instituto de frequente presença na história humana: resultou ele da “formação dos costumes” e encontra-se “em quase todos os povos com certa nitidez, como fruto de sugestão da vida” (Pontes de Miranda).
Se faltou sistematizar-se esse arresto no direito de Roma (de toda a sorte, “o pensamento de tal instituto não foi estranho aos Romanos, mas sem tomar corpo, sem chegar à elaborada feição de princípio” -Pontes de Miranda)“, o exercício autotutelar do direito de crédito se foi solidando na prática jurídica, e vê-se no direito germânico do Medievo desde o mero direito de retenção de bens (embora não de expropriação -v. José Orlandis) até medidas de coação pessoal (o Faustrecht: o direito de punho; as Einlagen: as apreensões do próprio devedor e do fiador –cf. Brunner-von Scherin), na mesma linha instituindo-se, p.ex., nas Espanhas, o derecho de prendar o de embargar, direito que persiste até depois da Reconquista (vidē Núñez Lagos).
É verdade que as potestades políticas trataram, ao início, em geral, sem muito êxito de fato, de restringir o derecho de prendar o devedor e o fiador: já no século VII o intentara o visigodo Recesvinto, e não menos verdade é que se foi, paulatinamente, reduzindo a possibilidade da autotutela creditória no direito hispânico: p.ex., logo, mediante a invocação da paz do rei, o derecho de prendar não poderia exercer-se contra pessoas eclesiásticas (cardeais, bispos, clérigos e religiosos), os mercados e os caminhos para seu acesso, os tribunais e os prédios dos Ayuntamientos, e, mais à frente, não podia afligir as casas dos devedores e, sucessivamente, até mesmo as cidades (Orlandis, in “La paz de la casa en el derecho español de la alta idade media”). Abrandou-se ainda o efetivo exercício do derecho general de prendar cominando-se aos credores a sanção de pœna dupli, se houvesse cobrança indevida devedor mal cobrado (ou seja, restituição em dobro do valor do suposto crédito).
Estes obstáculos historicamente graduais ao derecho de prendar estão mesmo à raiz da relevância prática dos antigos scribæ medievais e das célebres cautelæ que passaram a adotar-se na celebração dos negócios: v.g., as cláusulas cautelares de rancura ꟷprévia renúncia do devedor a discutir o débito judicialmente ꟷ e do obstagium ou pactum de ingrediendo, com que o devedor admitia, em benefício do credor, a apreensão de seus bens ou de sua própria pessoa. Dessas cautelas algumas houve que não eram isentas de malícia, e é por isto que se celebrizou a expressão cautelæ Cepollæ, vale dizer, as cautelas referidas pelo veronês Bartolomeo Cepolla ou Cipolla (1420-1475), expressão que passou exatamente a significar, de maneira correntia, os artifícios, as astúcias, as artimanhas, etc. (cf. Rafael Núñez Lagos).
Um dos traços fundamentais do arresto, ao longo de sua história, é o de ser uma tomada autoritária de bens do devedor (ou arrestado: assim se chama quer o devedor, quer a coisa apreendida); bens tanto móveis, quanto imóveis, embora mais comum, nos tempos anteriores, o arresto de móveis; tomada autoritária (esta expressão é de Pontes de Miranda) que, em princípio, não se exige apenas ordenada na via judiciária, admitindo-se a prenda extrajudicial ou prenda privada: p.ex., na Hispanidade, “com a destruição do reino visigótico, não se foram os hábitos, e ficou o instituto, em sua feição primitiva de tomada extrajudicial, de arresto de própria autoridade, nos casos de contrato e de delito” (Pontes de Miranda).
786. O arresto de garantia ou de segurança, ainda que seu perfil singular varie nos ordenamentos jurídicos dos povos, tem sempre natureza cautelar; já ficou dito é “providência provisória” (Lopes da Costa), “sua função esgota-se na tutela preventiva” (Humberto Theodoro Júnior), é “a garantia de execução futura por quantia certa” (Lopes da Costa), mas a ideia de prevenção não significa sempre anterioridade da via executória: o arresto pode ser medida preparatória ou incidente (Carvalho Santos).
Nisto se distinguem, de um lado, o arresto, e, de outro, a penhora, institutos que se diferenciam por seus fins próximos: “Os pontos de contacto em que ambos convergem não identificam, entretanto, uma e outra coisa, que profundamente divergem em suas finalidades” (Lopes da Costa).
O arresto não tem, de si próprio, eficácia executória direta e imediata –é dizer, não pretende levar prontamente à satisfação real do direito de crédito–, senão que apenas trata de assegurar ou garantir, mediante ulterior e necessária penhora (esta, sim, medida imediata e direta de satisfação), que o crédito objeto não seja frustrado: o arresto “garante, enquanto não chega a oportunidade da penhora” (Humberto Theodoro Júnior).
Gráfica é, a propósito, a expressão de Lopes da Costa: “Arresto não é penhora”. Ambos, entretanto, consistem na retirada jurídica de bens que integram o patrimônio do devedor; retirada jurídica, ou seja, a apreensão e o depósito de bens, inibindo-lhes a disponibilidade (do que trataremos adiante); todavia, não já necessariamente retirada material dos bens (perda efetiva da posse, que não se impede permaneça, com o caráter de depósito, com o próprio arrestado). É de Lopes da Costa: “… tanto no arresto, como na penhora, apreendem-se e depositam-se os bens. Estes, porém, na penhora, levam logo a marca do seu destino: apreendem-se para serem vendidos. No arresto, tomam-se, para conservá-los longe do poder de disposição do devedor”.
Admite-se eleja o credor qual dos dois –arresto ou penhora– quer utilizar: “O direito brasileiro não exclui a medida preventiva quando a penhora já seria possível. (…) Quem tem duas pretensões, que não se excluem, nem se têm de alternar, pode usar da que lhe parece de exercício mais oportuno” (Pontes de Miranda). A possibilidade desta escolha não viabiliza, contudo, arrestar-se, numa só execução, bem que já esteja penhorado em favor do exequente. Note-se que a previsão de ulterior penhora acarreta que o objeto do arresto –“apreensão judicial de bens indeterminados do patrimônio do devedor” (Theodoro Júnior; “o arresto não visa a bens determinados” –Carvalho Santos)– haja de ser coisa penhorável, exatamente porque o arresto visa a garantir uma futura penhora (ou arrecadação, na hipótese de insolvência).
Pontes de Miranda ensinou que a alienação ou oneração da coisa arrestada (o mesmo se diga da penhorada, hipotecada, empenhada ou sequestrada) não se fulmina de nulidade, mas, isto sim, marca-se de ineficácia relativa (cf., brevitatis causa, o § 1º do art. 792 do vigente Código brasileiro de processo civil). Disse o autor, a propósito: “A alienação do bem penhorado, ou sequestrado, ou arrestado, é válida e eficaz, exceto quanto ao exequente, ou ao autor do pedido de sequestro ou de arresto. (…) O terceiro adquirente fica no lugar do executado quanto a esse bem, dá-sucessão na sujeição à execução e insere-se ele na relação jurídica processual (…)”. Prosseguiu adiante o mesmo autor:
“A penhora, o sequestro, o arresto e os direitos reais de garantia não fazem inalienável o bem, nem o tornam, a fortiori, fora do comércio. (…)
Vulgarmente, pensa-se que a alienação do bem arrestado, ou sequestrado, ou penhorado, ou hipotecado, ou empenhado, ou sujeito a anticrese, é nula. Passa-se o mesmo a respeito da venda de coisa alheia que os não-juristas têm por nula. Não há nulidade. Há ineficácia. A venda não tem efeito contra o que obteve o arresto, ou o sequestro, ou a hipoteca, ou a penhora, ou a anticrese”.