(da série Registros sobre registros n. 200)
Des. Ricardo Dip
811. O Código civil brasileiro de 1916 previa, em seu art. 712: “Se o prédio dominante estiver hipotecado, e a servidão se mencionar no título hipotecário, será também preciso, para a cancelar, o consentimento do credor”.
De consonância com a literalidade desse texto legal, firmou-se a doutrina em que somente poderia o credor hipotecário opor-se à extinção das servidões na hipótese de estas se preverem no título institutivo da hipoteca.
Lê-se, a propósito, na lição de Clóvis Beviláqua:
“A servidão é uma qualidade útil do prédio dominante, aumenta-lhe o valor, e no caráter de coisa acessória está, com o prédio, vinculada ao ônus hipotecário. Por isso depende da vontade do credor permitir que ela se cancele (…). Se, porém, a servidão não estiver mencionada no título hipotecário, não se entenderá que ela está excluída da garantia, porém, sim, que o credor não tem direito de impedir a sua extinção.”
Não diversamente disse Carvalho Santos: “(…) só é exigido o consentimento do credor, para se verificar o cancelamento, se a servidão é mencionada no contrato”.
Dessa maneira, requerida que fosse uma averbação de cancelamento de registro de servidão de imóvel sujeito a hipoteca, ao oficial imobiliário caberia verificar se a servidão se mencionara no título hipotecário, e, tanto isso se visse, exigiria o consentimento do credor, sob pena de nulidade do cancelamento, restaurando-se o registro da servidão (cf. Carvalho Santos).
812. Ocorre que, em 1º de janeiro de 1976, entrou em vigor no Brasil a Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (vidē seu art. 298), em cujo art. 256 passou a enunciar-se: “O cancelamento da servidão, quando o prédio dominante estiver hipotecado, só poderá ser feito com aquiescência do credor, expressamente manifestada”.
Vale dizer que, com esse dispositivo legal, já não se condicionou a exigência do consentimento do credor ao fato de referir-se a servidão no título hipotecário.
Walter Ceneviva saudou a novidade:
“Estando o imóvel hipotecado, depende o cancelamento da anuência do credor, mesmo que na servidão não se mencione o título hipotecário (sic), diversamente do que dispõe o art. 712 do Código Civil, que, nessa parte, foi modificado e para melhor: havendo registro da servidão, no cartório imobiliário, o conhecimento do credor é presumido.”
É da doutrina de Arnaldo Rizzardo que, no Código civil de 1916 (art. 712), “o consentimento do credor hipotecário afigurava-se indispensável, no caso da servidão vir mencionada por escrito no título constitutivo da garantia”; mas, prossegue o autor, “com a nova regra [art. 256 da Lei 6.015/1973], é requisito necessário a aquiescência do credor, haja ou não, referência do ônus no instrumento gerador da dívida”.
Assim, da Lei 6.015 resultou que –em palavras de Valmir Pontes–, haja ou não referência à servidão no título institutivo da garantia hipotecária, “o consentimento do credor será sempre indispensável ao cancelamento”.
813. Deu-se, contudo, a sobrevinda do Código civil brasileiro de 2002, que dispôs no parágrafo único de seu art. 1.387: “Se o prédio dominante estiver hipotecado, e a servidão se mencionar no título hipotecário, será também preciso, para a cancelar, o consentimento do credor”.
Ou seja, voltou-se ao texto do art. 712 do Código civil de 1916, exigindo-se, pois, para averbar-se o cancelamento da servidão o consentimento do credor hipotecário, desde que mencionada no título da garantia.
Deve entender-se, em rigor, que se deu a revogação o disposto no art. 256 da Lei 6.015, porque o Código civil lhe é posterior e inclui condição que inexistia na previsão do mesmo art. 256.
De vários modos as leis –ou mais exatamente, as normas legais– são suscetíveis de revogação, no todo ou em parte. Num primeiro modo, têm-se as revogações que se podem chamar substantivas (ou conceituais), porque dizem respeito ao conteúdo das normas. Num segundo modo, há revogações adjetivas –revogações fontais–, porque, sem alteração de conteúdo, têm modificado seu locus referencial: com efeito, uma norma legal repetida em lei posterior de mesma ou superior hierarquia desta última passa a emanar qual de sua fonte legislativa, com que se revoga, não por seu conteúdo, mas por sua origem, a norma antecedente; isto que parece pouco relevante, pois que o conteúdo da norma se mantém, ganha, todavia, em importância quando se pense na revogação da lei posterior, da qual revogação não se pode extrair a repristinação da norma precedente; tenha-se em conta o que, a propósito, enuncia o § 3º do art. 2º do Decreto-lei nacional 4.657/1942 (de 4-9): “Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
As revogações substantivas supõem sempre a incompatibilidade entre normas, e seu conflito pode solver-se por diversos critérios. Consideremos aqui, brevitatis causa, a hipótese de uma norma ser posterior a outra, ambas de mesmo porte hierárquico.
Esta é a situação que parece convir ao confronto entre o disposto no art. 256 da Lei 6.015, de 1973, e o que prevê o parágrafo único do art. 1.387 do Código civil, lei posterior àquela normativa de registros públicos, as duas de mesmo nível hierárquico.
Sendo assim, para o cancelamento do registro de servidões apenas se exigirá o consentimento do credor hipotecário quando o título da hipoteca indicar a existência da servidão.
814. Por derradeiro, façamos aqui um breve excurso para apontar não só o fato de que à extinção das servidões administrativas concorrem algumas causas comuns ao direito privado (p.ex., a consolidação da propriedade dos imóveis dominante e serviente), mas não todas essas causas (g., a prescrição extintiva pelo desuso, conforme predominante entendimento doutrinário –cf., por todos, Juan Antonio Carrillo Donaire), bem como referir o tema do que se diz perpetuidade –melhor seria, parece, falar em perdurabilidade– de algumas servidões administrativas, matéria, pois, que, de algum modo, interessa ao âmbito de sua eventual extinção.
As servidões administrativas fruem de uma utilitas que beneficie o poder público –é dizer, em palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que elas perseveram segundo o interesse público, de modo que “perduram enquanto subsiste a necessidade do poder público e a utilidade do prédio serviente”. Nesse sentido, pode matizar-se a gráfica sentença de Arnaldo Rizzardo qual a de as servidões não serem perpétuas, ultimando-se “quando termina a utilidade que as determinou”. Todavia, no caso das servidões administrativas, não é raro que essa utilidade seja longamente perdurável.
Daí que a assinação de um seu termo final –p.ex., em acordo ou até em sentenças– seja, de comum, pouco ou nada relevante, ainda que a admita Guido Zanobini, para quem “può essere stabilito un termine, la cui scadenza, se non avvenga il rinnovamento o la prorroga, determina la cessazione”. Acontece que nada impede, atingido seja o termo ad quem, reconhecer a perseverança da utilidade da servidão, caso em que ela persistirá “pelo tempo que se fizer necessário, ainda contra a vontade do particular” (Maria Sylvia Di Pietro) –particular que só pode, neste quadro, conformar-se com a indenização, sem pedir que se extinga, pelo só atingimento do termo final, a servidão administrativa constituída.
Por outro lado, calha ver que tampouco esse termo final pode ser causa compulsória de persistência da servidão administrativa, porque –é ainda lição de Maria Sylvia Di Pietro – “se a necessidade pública cessar antes do termo estipulado, cabe também ao poder público extinguir a servidão, já que tem a faculdade de rescindir, unilateralmente, os contratos que não mais atendam ao interesse público”.