A Inscrição da Medida Cautelar de Sequestro

(da série Registros sobre registros n. 196)

                                                 Des. Ricardo Dip

797. Tem-se na Lei 6.015, de 1973, indicação expressa de o sequestro de bem imóvel ser suscetível de inscrição pelo modo do registro stricto sensu (cf. item 5º do inc. I do art. 167).

Em nosso Regulamento registral de 1939 –Decreto 4.857/1939 (de 9-11)– o sequestro era objeto de inscrição (inc. VI do art. 178) no livro 4 (art. 279), que era o livro dos registros diversos (art. 182), no qual se inscreviam os títulos institutivos “de direitos reais reconhecidos por lei, quer entre vivos, quer mortis causa” (art. 252).

Com a vigência da Lei 6.015, diploma que se apartou da técnica dos livros dispersos –ou seja, do que também se tem designado técnica da diáspora registral–, o livro 2 constituiu-se como polo atrativo de todas as inscrições permanentes, ressalvadas as atribuídas ao livro 3, que, além de seu expresso caráter auxiliar do livro 2, acolhe títulos que, inscritíveis no registro de imóveis por disposição legal, todavia “não digam respeito diretamente a imóvel matriculado” (art. 177). Os demais livros são de protocolo (livro 1 -art. 174) e de indexação (livros 4 e 5 -arts. 179 e 180). Assim, o livro 2 passou a albergar todas as inscrições permanentes relativas aos imóveis objeto, e bem por isso denomina-se registro geral (art. 176). Nele os títulos são suscetíveis de dois modos inscritivos, mencionados no caput do mesmo art. 176: ou registram-se (modo de registro stricto sensu) ou averbam-se. E, com esse critério dúplice, o art. 167 da Lei 6.015 distinguiu em dois incisos as hipóteses sujeitas a um ou outro dos referidos modos de inscrição, assinando ao título da medida de sequestro –em dispositivo específico que reúne ainda a penhora e o arresto– a prática do registro em sentido estrito.

798. O Código de processo civil de 2015 –já o deixamos dito– pouco se refere, expressamente, à medida de sequestro (cf. arts. 159, 301, 553, par.único, e 641, § 1º), nada indicando especificamente sobre sua inscrição no registro predial. Numa hipótese muito restrita –a de execução em que seja sujeito passivo o proprietário de terreno submetido ao regime do direito de superfície, ou o superficiário (art. 791)– existe, é verdade, menção de que se averbem na matrícula do imóvel os “atos de constrição” (§ 1º do art. 791), o que abrange, portanto, o sequestro. Fora isto, porém, e a hipótese é efetivamente estreita, não há referência explícita ao modo de inscrição do sequestro, desfiando-se no Código apenas indicações do modo inscritivo da penhora e do arresto no ofício imobiliário, que é sempre o modo da averbação (cf. arts. 828, 837, 844, 868 e 889).

799. Seria já tentador, nesta situação normativa, invocar a analogia para sugerir que se adotasse o modo do averbamento na inscrição do sequestro no ofício predial, já que outras e acercadas medidas constritivas, a saber: a penhora e o arresto, são, na lei, expressamente suscetíveis de averbação na matrícula imobiliária. Mas essa sedutora tentação esbarraria num óbice: teria de enfrentar a previsão expressa da Lei 6.015 de que o sequestro se atrai pelo registro stricto sensu (item 5º do inc. I do art. 167), já que somente a penhora e o arresto, ante a previsão explícita do Código de processo civil (já o de 1973!), convocariam a revogação tácita sumariada no aforismo lex posterior derogat priori (§ 1º do art. 2º de Decreto-lei 4.657/1942).

Com efeito, embora já a similitude genérica das categorias dos atos constritivos –penhora, arresto e sequestro– dê fundamento adequado à adoção do raciocínio por analogia, o fato é que, considerando este âmbito particular, a semelhança das medidas de constrição de bens é um suposto ou condição necessária para a argumentação analógica que almeje estender ao sequestro o modo de averbação previsto para inscreverem-se a penhora e o arresto. Insista-se, é condição necessária; mas o caso é que a semelhança não se reputa condição suficiente, de que segue não caiba esse recurso analógico quando regra explícita do ordenamento preveja o modo do registro imobiliário do sequestro.

Em outros termos, não se admite uma analogia intencionalmente formada contra legem, equivale a dizer, um recurso analógico ostensivamente contra regulam explicitam. A função da analogia, no campo do direito, é a de estabelecer uma regra nova –“una regola sulla produzione normativa, sulla produzione di norme nuove” (Giovanni Tarello, L’interpretazione della legge, Milão, 1980)–, ou seja, tal o disse François Ost, o raciocínio analógico deve fundar-se no silêncio do legislador –“ce raisonnement, basé sur le silence du législateur“ (na obra coletiva, dirigida por Michel van de Kerchove, L’interprétation en droit, Bruxelas, 1978).  (Abdica-se aqui de considerar o tema, que é de cariz notoriamente ideológico, do ativismo ou positivismo sociológico dos aplicadores de ordens no plano do direito).

Não diversamente o art. 4º do Decreto-lei nacional 4.657/1942     dispõe: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (os itálicos não são do original).

Desta maneira, tanto que esteja vigente a regra do item 5º do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, de 1973, a prever que a medida de sequestro deva inscrever-se segundo o modo do registro em sentido estrito, esse modo –o do registro stricto sensu– haveria de impor-se à observância dos registradores, sem possível recurso à analogia com a regulação inscritiva da penhora e do arresto.

800. Acontece que a Lei 11.382, de 6 de dezembro de 2006, alterando regras do Código de processo civil (de 1973), como já ficou sobredito, preceituou a averbação –que se tem denominado de premonitória (art. 615-A desse Código de 1973)– do arresto e da penhora potenciais; e a mesma Lei 11.382 dispôs submeter-se à averbação imobiliária a medida da penhora efetivada (§ 4º do art. 659, a que também já referimos antes). Nada então se previu, de maneira específica, a respeito da inscrição do sequestro.

Calha, no entanto, que o art. 823 do mesmo Código de processo civil de 1973 determinou aplicar-se ao sequestro, no que coubesse, o que esse Código previa acerca do arresto, e, no art. 821, enunciou: “Aplicam-se ao arresto as disposições referentes à penhora (…)”, ressalvadas regras específicas em contrário (ou seja: as regras da penhora não alteradas na Seção do Código relativa ao arresto: arts. 813 a 820; e aí nada se fala da inscrição).

Logo, já, proximamente, por força do disposto no referido art. 823 do Código de 1973 caberia, para o sequestro potencial, o modo de averbação imobiliária expressamente previsto para a inscrição do arresto em potência. E, mais além, agora com amparo no art. 821 –o que seria de si também bastante para a hipótese anterior, qual a da averbação dita premonitória do arresto e do sequestro–, ao impor-se a extensão, secundum legem explicitam,  da disciplina da penhora ao arresto (art. 821) e da disciplina do arresto ao sequestro (art. 823), rematou-se em concluir ser objeto de averbamento o sequestro efetivo de bens imóveis.

Isto resolvia a contento a identificação do modo inscritivo do sequestro ao tempo do Código processual civil de 1973. Havia de ser a averbação. Nada obstante, assim já se observou, com o Código de processo civil de 2015, de par de não haver dispositivo sobre a inscrição do sequestro, não vieram reproduzidas as regras dos arts. 821 e 823 do revogado Código anterior.

Ora bem, dá-se agora um caso de lacuna relativa à inscrição do sequestro. Lacuna, porque, assim o dispõe o § 3º do art. 2º de nossa Lei de introdução às normas do direito brasileiro (é dizer, o Decreto-lei 4.657/1942 com retificação de nome), “salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”. Ou seja, a Lei 11.382, de 2006, revogou a regra do item 5º do inciso I do art. 167 da Lei 6.015, quando previu aquela o modo de averbação predial para a penhora, o arresto e –extensivamente (arts. 821 e 823)– o sequestro. A revogação posterior do Código processual de 1973 –incluídas nele as disposições da Lei 11.382– não repristinou a regra que, na Lei 6.015, previa o registro stricto sensu do sequestro, ausente no novo Código ressalva de eficácia repristinatória dessa regra da Lei 6.015.

Caracterizada a lacuna –le silence du législateur– quanto à inscrição do sequestro (por omisso o Código processual de 2015) é já de todo razoável invocar a analogia para, ante a previsão de averbamento predial da penhora e do arresto, admitir, diante da similitude das categorias constritivas objeto, o modo de averbação imobiliária do sequestro.