Por Ricardo Dip
(seq. NOTÁRIO LATINO ou ROMÂNICO):
À afirmação de que o documento é um ente artificial resultante de uma concausa eficiente humana, o que, pois, faz supor sempre um scriba, deve juntar-se uma segunda assertiva, a de que tanto a natureza racional dos homens, quanto o predicamento de sua natureza política, ambos exigem o documento como forma de comunicação perseverante no tempo e extensível no espaço. Se a razão humana exige a linguagem, como, analogamente, a sensibilidade exige o movimento (cf. Llovera), é porque ter ideias sem nunca poder expressá-las é tanto como sentir o nocivo e o conveniente e não poder a este buscar, àquele fugir. Além disto, a vida política é uma convivência comunicativa de pensamentos e afetos. O documento em sentido próprio (ou seja, o corpóreo) responde à aspiração de comunicar mais além da presencialidade de seu autor, é dizer, comunicar agora (no tempo instantâneo do presente) com destinação ad futurum e quanto a algo, então, que já será passado.
Assim é que a conaturalidade intelectual e política entre os homens e os documentos permite concluir ser o scriba uma exigência natural da comunidade: scriba é aí o que escreve por profissão, mas também o que escreve por ócio;é o que vive de seu escrever, mas é também o que escreve só para seu viver(neste último caso, vem à lembrança o que Fulcran Vigouroux disse dos egípcios: tinham eles mania de escrever).O notariusdescende desses scribæ que vicejam em toda história humana.
Segundo os autorizados Ernout e Meillet, o vocábulo notarius derivaria proximamente do latim nota, æ, compreendendo as acepções de signum, de letras (litteræ), de registros (tabulæ), de escritos em geral –a que talvez caiba, extensamente, a expressão notæ litterarum; já o termo jurídico nota censoria –significando a censura que autoridades lançavam contra alguém em livros oficiais– fez com que se expandisse o vocábulo nota para abranger as ideias de infâmia e ignonímia. Por sua vez, a palavra nota advém, conforme esses mesmos autores, do verbo latino nosco (ou gnosco), que significa saber, conhecer, ter conhecimento, adquirir conhecimento, reconhecer cēt.: lê-se, em Cícero, futura prænoscere (conhecer o futuro) pernoscere (conhecer perfeitamente), cognoscere de re (tomar conhecimento).
Diversamente, o linguista holandês Peter Schrijver –com o abono expresso de Michiel de Vaan– sustenta que a palavra latina nota não deriva de nosco (nem de gnosco), mas de uma raiz indoeuropeia (*snt, com a acepção de noticiar), que gerou no latim o verbo sentio (infinitivo sentire), que tem, entre suas acepções, a de perceber, algo ligado, pois, passivamente, à ideia de noticiar (i.e., perceber a notícia). Segundo uma glosa de Petrus Boaterius, a acepção medieval de nota, sob influência germânica, incluía o sentido de redigir para não confiar na memória, e, além disso, redigir com a condição de pessoa pública; nem todo escrito do notário, disse Boaterius, é escrito público, da mesma sorte que nem toda palavra do juiz é sentença, e que nem toda expressão do príncipe é uma lei (apud Rafael Núñez Lagos). Assim, as notæ, enquanto escritos produzidos por uma pessoa pública, seriam a gênese do termo notarius, que Rolandino Passaggeri conceituou “pessoa incumbida de redigir, pública e autenticamente, os negócios entre os homens”. Prevaleceriam, deste modo, para a radicação do termo notário não mais as ideias de saber, conhecer, reconhecer, senão que, segundo Schrijver, as de produzir escrito por pessoa pública e em forma pública: o notário, pois, é a publica personaque confere autenticidade (robur firmitatis) aos documentos que autoriza em pública forma –in publicam formam (cf. José Bono).
Mas para chegar melhor ao ponto é preciso descer das abstrações etimológicas –por importantes se reconheçam– à planície da realidade histórica.
Foto: Studio Mary Soares
Fonte: CNB-PR