Des. Ricardo Dip
O NOTÁRIO E A PALAVRA ( etsqq.)
A palavra -interior e exterior- é um ato da pessoa, ou, por outro ângulo, é a pessoa em ato, é a pessoa que atua.
– Assim, o amor às palavras é não só o amor à verdade, mas também o amor interpessoal (entre a pessoa emitente da palavra e a pessoa que a recebe) e o amor de si próprio.
Pois bem, S. Agostinho conhecia muito bem o tema do amor e desamor das palavras, e, a propósito disto, tem-se que Jacomo de Varazze, nas imperdíveis páginas da Legenda aurea (que tem uma excelente edição brasileira pela Companhia das Letras, 2003), historiou que o autor da Cidade de Deus fez estampar num local de suas refeições o seguinte escrito: “Quem ama palavras que minam a vida dos ausentes não é digno desta mesa”. De fato, este S. Agostinho, que sabia muito bem do valor das palavras (e também que grande literato foi ele!), qualificou o episódio de Marcus Attilius Regulus -que a seguir resumiremos- como exemplo nobilíssimo, pese embora fosse pagão seu protagonista.
Marcus Regulus era um dos chefes do exército romano e fez-se prisioneiro dos cartagineses. Um dia foi enviado ele a Roma com a missão, imposta por seus captores, de convencer os romanos da conveniência da troca de prisioneiros. Antes de partir, contudo, teve Regulus de dar sua palavra no sentido de que voltaria a Cartago, assim que cumprisse o mandato de que fora incumbido.
Marcus Regulus foi, efetivamente, a Roma com a missão que lhe fora imperada. Todavia, persuadido de que a troca dos cativos não era conveniente ao bem comum romano, discursou perante o Senado e convenceu da tese oposta ao que desejavam os cartagineses. Após isto, voltou a Cartago: “(…) ninguém o compeliu a retornar a seus inimigos, senão que ele voluntariamente cumpriu o que havia jurado”, e os cartagineses, “com rebuscadas e horrendas torturas, tiraram-lhe a vida” (De civ. Dei, XV, 1). Colocaram-no num caixão muito estreito, onde mais não podia do que estar em pé, atravessando esse caixão, por toda parte, com pregos agudíssimos, de sorte que Regulus, mantido à força em estado de vigília, terminou por desfalecer e, assim, foi ele traspassado pelos cravos.
Um autor contemporâneo, Alfredo Di Pietro, disse, com inteira razão, que a figura de Marcus Attilius Regulus se ergue qual o do paradigma do homem de palavra. Ao comprometer-se pela palavra -ao empenhá-la- “entregou sua honra, sua própria essência de homem”, pois, uma vez proferida a fórmula juramentada, estase retroverteu “dinamicamente sobre ele próprio”, obrigando-o a cumprir o prometido. Fazer o contrário seria não só sua desonra, mas uma afronta à sua essência humana singularizada.
Retomando a referência com que se iniciou este pequeno escrito, já pode afirmar-se que a desafeição às palavras é não apenas um desamor aos outros (os destinatários da palavra), mas por igual a quem mente, a quem as enuncia: “A palavra não foi dada ao homem (só) para enganar, mas para enganar-se” (Nicolás Gomes Dávila; mas houve aqui o acréscimo do advérbio “só”, que não está no original).
Não é a hipocrisia (a mentira; o falso; a simulação) algo restrito, pois, ao domínio moral da alteridade -em que os receptores da palavra têm direito à verdade-, senão que a simulatio exprime uma aparência divorciada do emitente real, uma visibilidade fraudatória desse emitente, ofendendo-lhe a honra e a personalidade.
E se a preservação da credibilidade é, assim, para todos, motivo de honor e manifestação entitativa da pessoa, com maioria de razão a perseverança da credibilidade notarial é atributo não só de honra, mas da própria onticidade profissional do notário: não se podem compaginar as ideias de notário e de falsidade. A credibilidade é, enfim, um dado conatural ao notário, a ponto de que se afirme ser seu elemento identitário mais característico.
Continuaremos no tema.
Fonte: CNB-PR
Foto: Studio Mary Soares