No Brasil, entre janeiro de 2016 e julho de 2024, dos 23,1 milhões de nascimentos, pouco mais de 1,2 milhão de crianças foram registradas somente com o nome da mãe. Neste Dia dos Pais, os dados divulgados no Portal da Transparência do Registro Civil, mostram uma realidade que altera o panorama social das famílias, sobrecarrega mães – emocional e financeiramente – e impõe às crianças um grave abandono afetivo. Para além da responsabilização, a ausência do nome do pai revela ainda o surgimento de novos contextos sociais que incluem a ruptura nos padrões convencionais de parentalidade.
O Conselho Nacional de Justiça vem atuando junto a tribunais e cartórios para assegurar esse direito básico. Desenvolvido pelo CNJ, e implantado nos 7.324 cartórios com competência para registro civil do país, o programa “Pai Presente”, por exemplo, busca identificar os pais que não registraram os filhos. O programa foi instituído em 2010 e tem por base os Provimentos 12 e 16 da Corregedoria Nacional de Justiça.
A iniciativa é replicada em diversos tribunais de todo o país. Seja em campanhas ou em ações pontuais, o Poder Judiciário vem intensificando os atendimentos a todos que necessitem identificar a paternidade. Nesses casos, os atendimentos também contemplam aqueles que já tenham processos em tramitação no Judiciário.
Em julho deste ano, o Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP) realizou ação de reconhecimento de paternidade em uma unidade prisional. O processo de reconhecimento atende tanto pais de crianças quanto de pessoas adultas que nunca foram registradas. Ainda em âmbito estadual, neste mês de agosto, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT) disponibilizará serviços como agendamento de audiências e exames de DNA gratuitos, entre os dias 12 e 16. Os interessados poderão emitir, por meio do Cartório de Registro Civil, novas certidões de nascimento.
Afeto como condição
Se em um passado recente a filiação vinculada ao casamento filológico – entre pai e a mãe – determinava boa parte dos registros, a realidade atual contempla novos acordos, nos quais o afeto é a condição eleita para efetivar os registros civis. A multiparentalidade, conceito que reconhece outras estruturas socioafetivas e não se limita à conjugalidade ou à consanguinidade dos genitores, vem promovendo mudanças significativas no contexto social brasileiro.
Márcia Fidélis, registradora civil de Mateus Leme, região metropolitana de Belo Horizonte (MG) e presidente da Comissão Nacional de Registro Público do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), afirma que a estranheza provocada pelo nome de duas pessoas do mesmo sexo no campo de filiação está com os dias contados. “A multiparentalidade é a possibilidade de termos, por exemplo, duas irmãs como mães socioafetivas ou mesmo casais homoafetivos. No sentido prático é uma pequena mudança, mas no campo do direito das famílias é uma revolução. Saímos de uma família patriarcal para uma família plural”, destacou.
A omissão do pai – ou de uma das partes responsável – no registro e no cuidado ao longo da vida implica em uma sobrecarga para a mãe. “Se não houvesse uma mãe que estruturasse a família, assumindo a educação, a criação do filho e o sustento, talvez o número de pais ausentes seria diferente”, avalia Márcia.
Reconhecimento acessível
A ausência do nome do pai no registro impede que o genitor tenha legitimidade jurídica para exercer sua paternidade, sobretudo quando a criança é muito pequena. Para Márcia Fidélis, o não registro é, em essência, uma irresponsabilidade.
Embora a falta do nome paterno na certidão de uma criança não esteja diretamente ligada a uma ou outra classe social específica, é um fato mais presente na vida de pessoas que são mais vulneráveis social e economicamente como explica diretora do IBDFAM. “As mães mais novas, que viveram já em um ambiente desestruturado, enfrentam mais dificuldades. A falta de condição financeira, principalmente, torna mais complicada a contratação de um advogado que possa entrar com uma ação de investigação de paternidade”, completou.
A registradora Márcia Fidélis aponta as facilidades disponibilizadas pelos cartórios nos últimos anos, como a possibilidade que é facultada à mãe de indicar o nome do possível pai no ato do registro do nascimento. Neste caso, a mãe informa o endereço do suposto pai, que será intimidado a comparecer ao juiz da infância e juventude destacado para cuidar da situação. Se o pai se recusar a fazer esse reconhecimento, o caso é enviado ao Ministério Público, que entra com uma ação de reconhecimento de paternidade na qual haverá teste de DNA. Além disso, o ato de registro de reconhecimento de paternidade é gratuito em todo território brasileiro.
Desconstrução
Repensar e fortalecer a paternidade é um dos muitos objetivos da consultoria sobre Parentalidades, Equidade de Gênero e Economia do Cuidado, 4Daddy. Leandro Crespo, um dos fundadores da instituição, lembra que a falta de reconhecimento paterno pode gerar sentimentos de rejeição e insegurança, impactando negativamente a autoestima e o desenvolvimento emocional da criança. “A ausência paterna reforça estereótipos de gênero e perpetua a desigualdade. Isso perpetua a visão tradicional de gênero, na qual o homem é visto como o provedor financeiro e a mulher como a cuidadora, dificultando a construção de uma sociedade mais igualitária”, explicou.
A 4Daddy promove cursos de letramento, sensibilização e engajamento que contribuem para formação de novos homens, mais conscientes. “Ao abordar temas como paternidade responsável, igualdade de gênero, cultura antimachista, combate às violências, vieses inconscientes, estamos criando uma nova consciência entre os homens. Esses programas são projetados para alcançar homens de diferentes contextos sociais e econômicos, utilizando abordagens que ressoam com suas realidades e experiências”, ressaltou.
O trabalho de conscientização realizado por empresas sociais ou por políticas públicas promete mudar o quadro de abandono paterno. Na avaliação do presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), Gustavo Fiscarelli, a mudança gradual vem acontecendo em todo o país há vários anos. No entanto, ações específicas ainda são necessárias. “Muitos lugares do Brasil, isolados, ainda demandam uma atuação pontual do Poder Público. Todas as esferas (judicial e extrajudicial) precisam se mobilizar para que a informação chegue e, junto com ela, a conscientização pelos direitos dessas crianças. Estamos falando de uma medida de direitos, mas também de uma questão de humanização”, afirmou.
Fiscarelli enfatiza que a criança tem direito ao pai e em ter na sua certidão o nome do seu pai. “Sabemos o que isso acarreta para a criança estruturalmente, psicologicamente. Ter o pai registral significa conferir à criança todos os direitos decorrentes dessa linhagem. Nesse sentido, é fundamental que possamos fomentar iniciativas que são a essência do registro civil”, concluiu.
Fonte: CNJ