Diz-se em toda a parte, «ano novo, vida nova», mas a «vida nova» é sempre de algum e largo modo tributária do que já se passou na história, e, pois, para pensar numa vida nova do notariado −sem a imaturidade aventureira que costuma emergir de quando em quando−, prossigamos na rápida incursão pela trajetória histórica da instituição notarial.
A série «Calves notariais e registrais» o ano de 2023 concluiu-se com alguma referência a atividade de escrituração entre os antigos hebreus. E nesta exposição vamos debruçar-nos, muito brevemente, sobre uma passagem testamentária e, em particular, numa lição de um antigo advogado e notário italiano, Limenio Stroppa da Vercelli, lição que recolheu João Mendes de Almeida Júnior nas páginas de Órgãos da fé pública.
Pois bem. O texto que vou ler-lhes está no livro do Deuteronômio, ao princípio do capítulo 27. Seu relevo está na indicação da necessidade social (também, embora não se descarte a correspondente importância individual), repita-se: a necessidade da escrita não apenas para a conservação (ou recordação) dos mandamentos de Yavhé, mas para sua publicidade comunitária.
Coube ao profeta Josué, logo após a travessia do rio Jordão, cumprir as prescrições que lhe dera Moisés, gravando sobre pedras as palavras da lei. Vejamos o texto:
«Moisés e os anciãos de Israel deram ao povo a seguinte ordem: “Observareis todos os mandamentos que hoje vos prescrevo. Quando tiverdes passado o Jordão e entrado na terra que te dá o Senhor, teu Deus, levantarás umas pedras grandes que revestirás de cal. Escreverás nelas o texto desta lei, depois que tiveres passado e entrado na terra que mana leite e mel, terra que te dá o Senhor, teu Deus, como prometeu a teus pais. Quando, pois, tiverdes passado o Jordão, levantareis essas pedras no monte Ebal, revestindo-as de cal, como hoje vos ordeno. Construirás ali um altar de pedras ao Senhor, teu Deus, com pedras que o ferro não tenha tocado. Construirás, pois, o altar do Senhor, teu Deus, com pedras brutas, e oferecerás nele holocaustos ao Senhor, teu Deus. Oferecerás também sacrifícios pacíficos dos quais comerás no mesmo lugar, alegrando-te diante do Senhor, teu Deus. Escreverás nas pedras o texto completo desta lei, em caracteres distintos e claros. Moisés e os sacerdotes levíticos dirigiram então a palavra a todo o Israel nestes termos: ‘<Guarda silêncio, e ouve, ó Israel! Hoje te tornaste o povo do Senhor, teu Deus>. Obedece, pois, à sua voz e guarda os seus mandamentos e suas leis que hoje te prescrevo.»
As pedras gravadas, diz o Antigo Testamento, foram recobertas de cal −calces levigabis eos (assim se traduziu na Vulgata clementina)−, e, quando os cananeus quiseram conhecer o texto escrito e conservado nas pedras, encarregaram seus escribas −que sabiam ler− da remoção da cal e da tradução das palavras.
Ora, aqui entra em cena a opinião de Stroppa de Vercelli −segundo a referência de João Mendes, que aludiu aos escribas cananeus com o termo «notarin». Disse Stroppa que essa palavra «notarin» provém de um antigo comentário do Pentateuco, dando-se o caso de que, sendo um homicida conduzido à presença de um juiz, foi então chamado o concurso de um escriba ou «notarin». Leiamos o que, a propósito, observou João Mendes: «A palavra −notário− parece, assim, derivada do hebraico, notarios ou notarin (forma plural), traduzida nos léxicos latinos por notarii, scribæ jusdicenti».
Há uma interessante referência de Moacyr Amaral Santos acerca dessa opinião de Stroppa, qual a de filiar o vocábulo «notário a natar, hebraico, que significa observar e conservar», porque, e «o notário é não só a testemunha mais autorizada dos atos, como conservador dos documentos». Mas, prosseguiu Amaral Santos: «A palavra romana nota, segundo Pappafava, é de origem comum com o grego gnot, de gnosko, conhecer, porque a raiz not (g- not) é comum às línguas grego e latina. Notarius nada mais é que a aglutinação da raiz not e do sufixo rius» (in «João Mendes Júnior, mestre de direito processual», conferência proferida na Universidade Mackenzie, em São Paulo).