Visitando a história do notariado (para não perder o rumo de seu futuro) - (parte 3)

Comecemos a falar das origens remotas −de vetustas raízes− do notariado com uma breve referência ao antigo Egito.

Parece justo que se comece pela civilização dos egípcios, não principalmente por ter sido uma das grandes potências mediterrâneas, mas, isto sim, pela reputação de que frui ela no campo da escrita.

É provável que se deva atribuir ao notável estudioso Fulcran Vigouroux (1837-1915) a afirmação de os antigos egípcios terem adquirido a «mania de escrever». Schuster e Holzammer, em uma nota de rodapé de sua célebre Historia bíblica (aqui compulsada na edição castelhana: ed. Litúrgica Espanõla, Barcelona, 1934, tomo I, p. 58), referem-se a serem «conhecidas (…) as afeições literárias dos antigos egípcios», que, já por volta de 2000 a.C., possuíam uma literatura bastante desenvolvida, dando-se ao papiro, tanto no âmbito privado, quanto no pública, grande estimação, observando os autores que os egípcios escreviam também sobre pedras, madeiras, tabuletas de argila e de cera, pergaminho, e mencionam esta passagem do conceituado egiptólogo alemão Heinrich Karl Brugsch (1827-1894), segundo o qual «[no Egito antigo] até o mais tosco pedregulho cobria-se de inscrições».

Cabe destacar, a propósito dos escritos no antigo Egito, o quanto se dedicou deles aos costumes e preceitos religiosos e morais. Escreveu Heródoto que os egípcios eram os mais religiosos de todos os homens, e a própria escrita denominava-se entre eles «palavras de deus», por acreditarem ser ela um presente de Thot, o «escriba dos deuses» (cf. Steven Roger Fischer, História da escrita, ed. Unesp, São Paulo, 2009, p. 35).

Na antiga religião egípcia conviviam as crenças numa legião de deuses e num «grande deus único» (Junker, in VV.AA., dir. de Franz König, Cristo y las religiones de la Terra, ed. BAC, 1961, tomo II, p. 545), o que, por este aspecto, aproxima-a do sincretismo religioso da hora presente. Haverá nessa religião dos antigos egípcios algo ainda de muito similar a algumas outras práticas de nossos tempos, assim, por uma parte, a do culto aos animais tão aparentado do ecologismo atual (cf. Schuster e Holzammer: matar um gato, p.ex., era um crime cujo autor pagava com a morte); ou também, por outra parte, com uma sorte de gnosticismo de cunho antropocêntrico: no «caos aquático», segundo o credo dos antigos egípcios, da expressão sexual de um demiurgo teriam nascido os homens gêmeos que determinam o destino universal, e o homem desse modo descobriria em si a essência do demiurgo criador. Essa gnose dizem alguns autores ter influído na religião dos hebreus desde o cativeiro do Egito (1.300 a.C.) e, depois, o cativeiro da Babilônia (séc. VI a.C.), contaminando a tradição cabalística ortodoxa, relegada ao esquecimento (vejam-se, a propósito, Julio Meinvielle, De la cábala al progresismo, ed. Epheta Buenos Aires, 1994, p. 19, e Ennio Innocenti, La gnosi spuria, ed. Sacra Fraternitas Aurigarum, Roma, 2009, tomo I, p. 12).

Interessa-nos aqui uma concisa referência à atividade escriturária dos grandes sacerdotes da religião egípcia, pois eles, quando se realizavam as procissões em honra de seus deuses (Rá, Ísis, Osíris, et reliqua), tinham a obrigação −de uma só vez religiosa e política− de lavrar um relatório, uma notícia do acontecimento. Essas procissões eram as mais longas −havia outras, mais curtas, que, embora públicas, chegavam apenas ao pátio anexo ao templo (cf. Mallon, in VV.AA., dir. de Joseph Huby, Christvs - História das religiões, ed. Saraiva, São Paulo, 1956, volume III, p. 607 e 608). Aquelas, as mais longas, percorriam as ruas das cidades (p.ex., as de Carnaque e de Luxor), transitando de um templo a outro, sob as vistas e as aclamações do povo. Eram essas, as mais largas, que deviam ser objeto da relação dos sumos sacerdotes, lançadas, então, em uma tabuleta recoberta de argila (ou de cera), na qual se escrevia com um buril de junco.

E que coisa era isso senão o que hoje denominamos ata notarial?