Visitando a história do notariado (para não perder o rumo de seu futuro)- (parte 2)

No merecidamente célebre Tratado de notaría escrito por Miguel Fernández Casado (Madri, 1895), há uma observação segundo a qual, desde «la más remota antigüedad», alguma sorte de escrita de contratos era tida por necessária «a toda sociedad medianamente organizada» (tomo I, item 33, p. 53). Significa isso que a atividade de escribas tem um caráter universal, ou seja, não depende de fatores geográficos, étnicos ou temporais, ainda que se reclame uma dada organização social; em outros termos: que se tenha um modo de simbolização e de permanência dos símbolos em dada corporeidade (rectius: documento).

Parece acertada a reserva com que Giménez-Arnau vê a aproximação da prática das escriturações da mais longínqua Antiguidade relativamente ao que se dá nos tempos atuais. Diz o autor, de maneira gráfica, que «del scriba hebreo al Notario de hoy hay un abismo (…)» (Derecho notarial, Eunsa, Pamplona, 1976, p. 89). Sem embargo disso, o mesmo Giménez-Arnau reconhece que as funções fundamentais entre os mais antigos escribas e os tabeliães das notas de nosso tempo «tienen un gran parecido: ambas redactan actos o sucesos jurídicos y les dan notoriedad oficial que la organización jurídica en que viven les permite» (o.l.c.).

O que há, pois, é um caráter seminal, um antecedente longínquo −uma causa remota−, mas algo há que permite algum acercamento entre as práticas mais antigas e as atuais atividades tabelioas. Não se exagere sua familiaridade, nem se recuse algum seu parentesco.

Costuma-se pensar −faz parte de uma tese que, à conta de repetida sem mais, acabou por assumir ares de incontrastável veracidade− que a escrita surgiu por uma sorte darwinista de ser, quer dizer, num ponto do itinerário evolutivo dos homens.

Não vou aqui tomar partido nessa questão controversa, mas apenas aponto que essa tese evolucionista se apoia na conjectura da ignorância inaugural da humanidade, o que é claramente oposto ao que se deve extrair do Antigo Testamento: os que creem seja a Bíblia um testemunho de Deus, sabem (ou deveriam saber) que Adão tinha a ciência de todas as coisas, porque as espécies lhe foram infundidas por Deus (cf., a propósito, brevitatis studio, S.Tomás de Aquino, Suma de teologia, I, q. 94, 3, ad 1).  Vem à feição esta passagem de Schuster e Holzammer:  «Sua inteligência [referem-se a Adão] estava adornada de grandes conhecimentos e altíssima sabedoria; provavelmente, foi-lhe outorgado desde o princípio o dom da linguagem (…)» (Historia bíblica -Antiguo testamento, ed. Litúrgica Española, 1934, p. 95; o destaque não é do original).

Deixando à margem essa discussão, não estará mal que digamos, entretanto, conste do Antigo testamento uma referência à primeira atividade notarial de que se deu notícia entre os homens. Ali consta, no Livro do Gênesis (2, 19-20), que Deus fez desfilar, perante Adão, os animais do campo e as aves do céu, para ver como Adão os chamava («ut videret quid vocaret ea») e a fim de que o nome de todos os seres vivos fosse o que lhes pusera o homem («omne enim quod vocavit Adam animæ viventis, ipsum est nomen eius»). Não se vá aqui ao ponto de afirmar, decerto, que Yahvé tenha escriturado uma ata notarial, mas não pode negar, sem mais, que não tenha havido nesse episódio bíblico uma atividade de narração percepcionada por Deus ao modo como atua um tabelião de notas para elaborar as atas notariais.

Prossigamos, contentando-nos com o que se possa afirmar documentado, segundo os estreitos critérios humanos, tratemos de examinar um pouco o que se passou no Egito antigo. E, depois, sempre a brevíssimo trecho, visitemos alguma coisa da história dos escribas entre os assírios, os gregos, os romanos e os hebreus.