«Tabelião»: uma aproximação histórica (parte 2)

 

              Depois de termos percorrido, na explanação anterior, a breve trecho embora, o terreno semântico −incluído o etimológico− relativo ao «tabelião», aventuremo-nos agora pela história real de sua caracterização latina.

Há uma primeira distinção que não é conveniente deixar de atender. Ela diz respeito às famílias notariais −ou seja, ao que se designa também, embora, a meu ver, com alguma impropriedade, «tipos de notariado». É de consenso admitir serem três essas famílias −ou tipos−, quais sejam (i) a anglo-saxã, (ii) a socialista e (iii) a latina.

A pertença a uma dessas famílias implica tanto uma «fenotipia», quanto, principalmente, uma «genotipia» (ou natureza) do notariado.

É relevante −e, saliente-se, de evidente alcance institucional− esta observação acerca do pertencimento notarial a uma dessas três linhagens.

Explico-me: ou bem se reconhece essas «genotipia» e «fenotipia» do notariado, ou ele será apenas o que alguma lei positiva determine que o seja. Esta redução positivista, no fim e ao resto, importaria na recusa do valor da realidade histórica, na adoção incontornável de uma posição a um só tempo nominalista e voluntarista.

Ao revés disto, reconhecer a «descendência», a «linhagem», a natureza concreta do notariado −é dizer, concretizada num tempo e num espaço determinados− é afirmar uma universalidade, um parâmetro a que vincular as determinações legislativas singulares.

Pois bem. Qual é o «genótipo» do notariado brasileiro?

Nosso tabelião nacional de notas é um herdeiro do notariado latino, cujo patrimônio foi recebido segundo consecutivas concretizações, de modo que nosso notariado pode dizer-se não só latino, mas românico (ou seja, com a feição da latinidade recepcionada pelo substrato romance), hispânico (porque o caráter românico se diversificou pela variedade de suas singularizações, incluída, tanto aqui nos interessa, a que se configurou na Península hispânica), lusitano (porque, dentro da pluralidade das Espanhas, já o Condado Portucalense −e, depois, o Reino de Portugal, especializaram algumas características em relação a seu gênero próximo, a Hispanidade), e, por fim, brasileiro (de que é gráfica a estrutura cartorial de nosso notariado).

Todavia, nosso tabelião é um notário latino.

Primeiro, porque sua herança se firmou nos três grandes pilares da latinidade notarial: (i) o estudo e a prática das artes do trivium, mormente da retórica; (ii) a oportuna especialização na ciência do direito, sobretudo graças à medieval Universidade de Bolonha; e (iii) a recepção de parcela da soberania política, qual a da dação da fé pública.

Depois: produto ou artefato comunal, uma criação «espontânea» da comunidade −destacadamente sob a impulsão das corporações de ofício ou grêmios profissionais−, o notariado latino deve mais à sociedade do que ao estado, de quem apenas recolheu o atributo da dação da fé pública.

Disto derivam algumas características próprias do tabelião latino, nada importando as modulações de suas variedades dentro de uma só linhagem histórica. Uma dessas características é a de exercer ele uma função pública, ou, mais exatamente, uma função de interesse público (assim o precisou Juan Vallet de Goytisolo, in Metodología de la determinación del derecho, ed. Centro de Estudios Ramón Areces e Consejo General de Notariado, Madri, 1996, tomo II, p. 1.094), caracterizada por ser o tabelião um delegatário ou depositário da fé pública. Todavia, uma outra característica assinala-se no tabelião latino; vejamos isto em palavras de José Alberto Vieira: "Como profissional liberal, o notário exerce a sua profissão de modo autónomo e independente do Estado e de quaisquer outras entidades…" (in Tratado de direito administrativo especial, coord. de Paulo Otero e de Pedro Gonçalves, ed. Almedina, Coimbra, 2009, vol. II, p. 136).

Prosseguiremos.