Uma antiga jaculatória frequentava −e acho que ainda visita− as orações habituais de alguns católicos. Ela diz assim: "Senhor, que eu não esteja no lugar errado na hora errada".
São tamanhas, de fato, as contingências da vida e tão variados e grandiosos os percalços que as costumam acompanhar que parece mesmo de todo prudente impetrar a Providência, prevenindo-nos de estar num local errado num tempo errado.
Vejamos, a propósito, a história do «coitado do tabelião» que estava no lugar errado na hora errada.
Vivia-se o ano de 1383. No mês de outubro, morrera, provavelmente à conta de uma tuberculose, o nono rei da dinastia fundada por Dom Afonso Henriques. Era Dom Fernando I, filho de Dom Pedro I (aquele mesmo dos amores de Dona Inês de Castro) e de Dona Constança Manoel. Ao morrer, Dom Fernando deixou apenas uma filha, então com dez ou 11 anos −Dona Beatriz, casada com o Rei Don Juan I, de Castela.
Pois bem. Ao passo em que o clero e os nobres, em ampla maioria, apoiavam a sucessão de Dom Fernando pela pequena Dona Beatriz: "Arraial! Arraial! Pela rainha Dona Beatriz de Portugal…", já o povo não a aceitava, por diversos motivos. Porque se pensava que o Rei castelhano, marido de Dona Beatriz, seria efetivamente o dono do poder em Portugal, e porque o povo nada gostasse da Rainha consorte, a então regente Leonor Teles de Menezes, mãe da pequena Beatriz.
Cogitou-se da possibilidade de serem aclamados os infantes João ou Dinis −filhos ambos de Dom Pedro I e de Inês de Castro; mas João estava preso em Castela (depois de ter assassinado sua mulher, Dona Maria Teles, irmã da Rainha Leonor), e Dinis havia lutado contra Portugal, integrando as milícias castelhanas.
Desta maneira, restava uma derradeira possibilidade, a de o novo rei ser um outro João, meio-irmão de Dom Fernando I, filho ilegítimo de Dom Pedro I e de Dona Teresa Lourenço. Este João era o chefe da Ordem Militar de Avis; daí que fosse chamado de o «Mestre de Avis».
Calha que havia na Corte um galego, João Fernandes Andeiro, Conde de Ourém, que tinha forte influência na política externa de Portugal e de quem diziam algumas línguas tinha seus amores com Dona Leonor Teles. Aconteceu, então, que ao Andeiro deram-lhe morte o Mestre de Aviz e Rui Pereira, tio deste Mestre que o levara a uma sala do Paço, desferindo-lhe um golpe de cutelo: "Atordoado, o Andeiro cambaleia −descreve assim a cena o notável historiador João de Ameal− [o Andeiro] tenta dirigir-se para junto da Rainha; mas Rui Pereira, com uma estocada certeira, acaba-lhe a vida" (in História de Portugal, ed. CDB, Rio de Janeiro, 2022, p. 162).
A esta altura, o povo era alvoroçado por um estratagema, difundindo-se a notícia de que tentavam matar o Mestre de Avis, que aparece, entretanto, são e salvo numa janela do Paço. Mas a turba não se contém: deu-se conta de que as torres da Sé de Lisboa, ao contrário do que ocorria em muitas outras igrejas, não repicava os sinos para festejar a morte do Andeiro. Acontece que lá na Sé estava o Bispo Dom Martinho de Zamora, castelhano e, para mais, adepto do Papa francês de Avinhão, o Papa Clemente VII (os castelhanos o apoiavam), num tempo em que Portugal reconhecia a autoridade do Papa de Roma, Urbano VI. Assim, a ideia de um bispo castelhano e cismático era um motivo adicional para inflamarem-se alguns, que logo acorreram à Sé, arrombando-lhe as portas e, subindo à torre, do alto atiraram Dom Martinho, cujo corpo, despedaçado, foi ainda conduzido até o Rossio.
Calha, no entanto, que na torre −lugar errado na hora errada−, em visita ao bispo, estava um notário da cidade algarvia de Silves, no Distrito de Faro, um lugar que tem belas praias… e que tinha, em 6 de dezembro de 1383, o coitado de um tabelião.
Pois estava esse tabelião em Lisboa, para “recadar” (scl. receber alguma coisa), e não se sabe por quais contingências da vida, pôs-se a visitar o Bispo Dom Martinho de Zamora, exatamente ao tempo em que a cidade se tumultuava e opinava mal da falta de repique do campanário da Sé do Alfama. A lógica das massas é muito simples: quem “com o Bispo estava, bem sabia parte daquela traição” (uma espécie de “diz-me com quem andas, e te direi quem és”). Oliveira Martins −em sua magnífica obra A vida de Nun'Álvares (ed. Guimarães, Lisboa, 1968, p. 116)− diz que o tabelião foi atirado da torre. Leiamos a narrativa do grande literato que foi Fernão Lopes, na Crônica de Dom João I: "O coitado do tabelião, que tinha tão pouca culpa como os outros, começaram a trazê-lo para baixo e a insultá-lo e empuxá-lo, dizendo que ele, que estava com o bispo, bem sabia parte daquela traição. Começaram a dar-lhe punhadas. Depois feriram-no e mataram-no".
Se a experiência histórica serve de exemplo para os homens, parece muito prudente que todos nós −os tabeliães, também− repitamos, de quando em quando, a jaculatória: "Senhor, que eu não esteja no lugar errado da hora errada". Amen.