Des. Ricardo Dip
Estamos tratando do ágio nas restritas acepções de juros e de usura.
É conhecida a passagem de Shakespeare, em O mercador de Veneza, quando a personagem Shylock aceita emprestar três mil ducados, estipulando a título de «multa» uma libra da própria carne de Antonio, o tomador do empréstimo. Essa justamente célebre comédia −que já estava escrita em 1598, mas só se publicou em 1600− põe em tela o ânimo de desapreço da sociedade da época acerca da agiotagem.
Para bem situar a crítica dos ágios, agiotas e agiotagens, é preciso observar que os primeiros banqueiros que apareceram no mundo (os banqueiros de Firenze, de Pisa, de Gênova, de Veneza) eram observantes da moral então comum à Cristandade desse tempo. Mais tarde, entretanto, degenerou-se o traço de honestidade nas operações de crédito, e é contra essa degeneração que reagiram o Magistério da Igreja e, com ele, a opinião popular.
Em 1571, quase três décadas antes, pois, da publicação de O mercador de Veneza, o Papa S.Pio V, editou a constituição In eam pro nostro, sobre as operações de câmbio, ali constando:
«(…) condenamos todos aqueles câmbios que são chamados fictícios e que assim se configuram: os contraentes fingem estipular câmbios em certos mercados ou em outros lugares e, nestes lugares, quem recebe o dinheiro emite suas letras de câmbio, mas não as entrega, ou então as entrega de modo que, passado o tempo no qual tinham valor, são devolvidas nulas, ou então, mesmo sem emissão alguma de tais letras, reclama-se o dinheiro com lucro, lá onde o contrato fora estipulado: pois entre os que dão e os que recebem, desde o princípio tinha sido assim combinado ou tal era ao menos a intenção, e não há ninguém que, nos mercados ou nos acima mencionados lugares, tendo recebido letras de tal espécie, efetue o pagamento.
A este mal se acrescenta também semelhante: emite-se câmbio fictício a título de dinheiro, ou depósito, ou com outro nome, para que, logo depois, seja restituído com lucro, no mesmo lugar ou em outro. Mas também nos câmbios chamados reais, às vezes, como nos foi informado, os cambistas prorrogam o termo preestabelecido de pagamento, enquanto é recebido ou até apenas prometido lucro em base de acordo tácito. Declaramos que tudo isso são atos de usura e proibimos, com todo o rigor, que sejam praticados» (cf. Denzinger, 1981-1982).
Recentemente, o muito autorizado pensador chileno Juan Antonio Widow −Professor emérito da Universidade de Valparaíso− publicou um opúsculo com o título El cáncer de la economía: la usura (ed. Marcial Pons, Madri, 2020). Esse título, decerto, diz-nos já bastante. Consideremos aqui algumas das lições do autor.
Juan Antonio, dizendo que por usura se entende o excedente que o prestamista exige do prestatário −o tomador de um empréstimo− sobre o capital ou principal emprestado, acentua que se trata de um preço pelo uso (de onde vem a palavra «usura») de um bem consumível −o dinheiro. Há, pois, uma diferença entre o dinheiro emprestado (capital) e o dinheiro devolvido; essa diferença é o preço do uso.
Aqui, porém, há uma distinção relevante: esse «preço do uso» pode corresponder a uma indenização por um dano emergente (damnum emergens), e, nessa hipótese, será um preço legítimo que atende aos postulados da justiça comutativa. Nesse âmbito, por exemplo, pode considerar-se legítimo preço do uso do dinheiro emprestado a diferença que corresponda à desvalorização da moeda: Juan Antonio diz muito bem que o empréstimo de uma quantidade de farinha exige que a mesma quantidade se devolva. E como o dinheiro não se há de fazer coisa distinta.
Diversamente, fora do quadro da indenização do damnum emergens, a cobrança de um «preço de uso» −ou seja, da diferença entre o dinheiro emprestado e o montante devolvido pelo mutuário importa −diz Juan Antonio− em «apropriação de algo alheio», porque não houve a produção de uma nova riqueza.
Prosseguiremos no tema, para tentar compreender as razões pelas quais a usura tem sido tão constantemente adversada.