Sobre ágio, agiota e agiotagem (primeira parte)

Des. Ricardo Dip

 Diz Antônio Geraldo da Cunha, no autorizado Dicionário etimológico Nova Fronteira, que o vernáculo «ágio» provém do italiano decimonônico aggio (i.e., o acrescentado), noticiando ainda a sucessiva palavra francesa agiotage. Aponta o autor a acepção original de aggio como «a diferença entre o valor nominal e o valor real da moeda». Essa acepção pode tomar-se à conta de prius analógico do termo «ágio», que foi acolhendo vários sentidos, sempre de algum modo referíveis a uma diferença valorativa de caráter econômico: «ágio» também significa «desconto», «bonificação», «comissão» e «juros». Do mesmo vocábulo «ágio» derivam as palavras «agiota» (especulador, usuário) e «agiotagem» (abusiva especulação financeira, mormente a monetária).

Nosso Código civil de 1916 aludiu ao ágio no § 3º de seu art. 947, dispositivo que não se reproduziu no Código civil de 2002. Lia-se ali: «Quando o devedor incorrer em mora e o ágio tiver variado entre a data do vencimento e a do pagamento, o credor pode optar por um deles, não se havendo estipulado câmbio fixo».

Trataremos aqui, de modo pontual e com a brevidade exigível, do «ágio» com o sentido de especulação ou cobrança de juros «em toda natureza de empréstimos feitos por banqueiros, ou particulares» (De Plácido e Silva).

Comecemos com uma grave advertência e, depois, para atenuar a gravidade do aviso, consintamos numa rápida visita literária.

Leio a advertência que nos lançou o grande pensador argentino, Pe. Julio Menvielle: «A questão da usura é a questão da vida terrestre. Depois do assunto da salvação, não há assunto maior na universalidade dos interesses humanos».

E agora, frequentemos aas páginas de Crime e castigo, de Fiódor Dostoiésvki, obra escrita entre 1865 e 1866, publicada em 1867. Sua personagem principal, Rodion Românovitch Raskólnikov, um estudante de direito que vivia num quarto mais parecido a um armário, mata, com deliberação e a machadadas, uma velha usurária (Aliona Ivânova) e sua irmã (Lisaveta Ivânova).

A agiotagem −ou, em outros termos, a usura− é um acontecimento econômico e não pode deixar, de algum modo que seja, de influir-se da política econômica em geral, é dizer, da política adotada, segundo variadas circunstâncias, acerca da adaptação dos recursos materiais às necessidades dos homens. Vem a propósito o que assinalaram Francisco Contreras e Diego Poole: outrora, o empréstimo visava, principalmente, ao consumo próprio, ao passo em que, nestes tempos, empresta-se, de modo muito frequente, para inverter em atividade produtiva (Nueva izquierda y cristianismo).

Vejamos muito concisamente −melhor se dirá: esquematicamente− em que consistiu a política econômica moderna e contemporânea. Abdiquemos dos matizes, por mais relevantes se reconheçam.

Partamos da ideia de um mercado livre −contra o qual se levantou, p.ex., o célebre Código social de Malines: «Não se pode esperar do livre jogo da concorrência o advento de um regime jurídico bem ordenado» (art. 90)− passando pelo liberalismo clássico, ancorado na ideologia iluminista, chegamos ao keynesianismo, que perdurou até cerca de 1970 −quando o derruiu a crise do petróleo−; o keysenianismo deu fundamento ao New Deal, adotado pelo Presidente norte-americano Franklin Roosevelt,  fazendo com que o estado interviesse na economia para garantir o welfare state (o bem estar social), gastando com obras públicas (porque têm longa duração) e fomentando o consumo (com empréstimos a juros baixos e impostos reduzidos). Atualmente, assistimos ao confronto entre, de um lado, o neoliberalismo (que surgiu na década de 1980 e consolidou-se com o Consenso de Washington, de 1989), e, de outro lado, o intervencionismo socialista, não faltando o hibridismo do chamado «capitalismo de laços». Acentuemos quanto a nosso tema que o Consenso de Washington −resultante do encontro do Fundo Monetário Mundial, do Banco Mundial e do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos− sugeriu várias medidas econômicas, visando à globalização dos mercados, entre elas a liberalização do segmento financeiro −rectius: a liberalização da taxa de juros.

Prosseguiremos.