Des. Ricardo Dip
Conforme ficou dito, ao lado de princípios últimos ou primários −princípios de caráter natural−, o notariado latino, e, com ele, sua descendência registral, têm à sua raiz princípios historicamente originantes (fundamenta quodammodo ingenita), princípios que não haviam de, necessariamente, formar-se do modo como se determinaram −isto é, por acontecimentos contingentes e atos humanos, atos livres−, mas que, uma vez ocorridos e adotados, deram origem singular ao que veio a constituir-se como a realidade histórica do notariado latino (isto é, sua forma acidental), e a que se seguiram as grandes vigas do sistema correspondente (os fundamenta derivata, princípios notariais próximos).
Também já se disse, na exposição anterior, que esses fundamenta quodammodo ingenita são três: o estudo e a experiência das artes liberais (trivium), sobretudo da retórica; depois, a formação especializada nos estudos notariais, de modo muito especial aí pontificando o papel da Universidade de Bolonha; por fim, a delegação da fé pública pelo poder político.
Comecemos por apontar que a presença e a importância do trivium para a gestação do notariado latino é um efeito histórico de medida política imposta pelo Imperador Justiniano (c. 482-565), ao editar a Constituição Omnem (do ano de 533), determinando que se reduzissem, no latíssimo Império romano, os centros públicos autorizados a ministrar estudos jurídicos. Somente três lugares: Berito ou Beritós (hoje, Beirute), Constantinopla e Roma. Logo fechou-se a escola da cidade de Roma, e esses estudos direito ficaram limitados às duas outras cidades (Berito e Constantinopla).
Embora escribas já houvesse na Antiguidade (p.ex., no Império de Roma havia tabeliones, tabularii, chartularii, actuarii, librarii, cēt., que, no dizer de Miguel Fernández Casado, “participaban más o menos del carácter notarial” (Fernández Casado), o fato é que, efeito da Constituição Omnem de Justiniano, deu-se que os práticos jurídicos do Império passaram a acorrer aos lugares em que se estudavam as sete artes liberais (trivium e quadrivium).
Num tempo em que as escolas profanas começaram a desaparecer no Império romano do Ocidente em razão das invasões bárbaras, foram as escolas religiosas o único local de preservação e de transmissão da cultura. É verdade que essas escolas se dedicavam especialmente à formação de clérigos, mas nelas terminou por admitir-se a presença de leigos –não só de crianças e jovens que provinham de famílias da nobreza, mas igualmente de meninos camponeses.
Diversamente do que se passou com o monaquismo do Oriente, em que, de início, havia uma preferência pela formação ascética e moral, já na escola monástica do Ocidente dizia-se que as letras eram de rigor: se, no Oriente, não era raro, então, fosse um monge analfabeto, o caráter letrado era, ao revés, uma característica dos monges ocidentais. Daí que os monges do Ocidente conservassem, longe da agitação social e política das cidades, os tesouros culturais do mundo antigo, estudando-os e transmitindo-os às gerações sucessivas. Foi só adiante que se criaram escolas paroquiais, claustrais, episcopais, catedralícias e palatinas, todas, cada qual a seu modo, com a intenção de aprender e ensinar os saberes.
Ora, faltando escolas dedicadas a estudar e difundir o saber jurídico, os práticos do direito, naqueles tempos do Império romano, atraíram-se a estas escolas religiosas, para nelas aprender algo que estivesse mais próximo de sua vocação, e esse algo era o trivium (as três primeiras artes liberais: a gramática, a retórica e a lógica e/ou a dialética).
Artes liberais dizem-se as artes dos homens livres, as artes “que não servem para ganhar dinheiro” (Curtius), e as do trivium são trilhas intelectuais que se cruzam e articulam-se (Miriam Joseph). E ao estudo dessas artes, pois, dirigiram-se os praxistas jurídicos, entre eles, os inclinados a serem scribæ, devotando-se a seu estudo e sua experiência, de maneira especial na meditação e no exercício da retórica, enquanto meio de buscar e expor argumentos em prol de determinada pretensão.
Estes praxistas, no mais, passaram a reunir-se em grêmios, firmando-se, então, o primeiro pilar histórico de que resultaria, séculos mais tarde, a instituição do notariado latino.