Sobre a ciência notarial e a ciência registral (parte 5)

Des. Ricardo Dip

 

Há no Digesto uma celebrada sentença de Ulpiano, para quem a ciência do direito consiste em conhecer as coisas divinas e humanas para chegar ao discernimento do justo e do injusto: "jurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia justi atque injusti scientia".

Dado seu caráter prático, o direito, entretanto, inclina-se a ser uma arte, ou seja, a uma operação −ao agere− dirigida a determinar quod bonum et æquum est (o que é bom e justo).

Essa arte do bom e equitativo, a ars boni et æqui a que já se referira o jurisconsulto Celso, é a que desenvolvem os juristas, em todo seu gênero, apoiados, se bem a querem exercitar, na realidade da vida −as res divinæ et humanæ−, a realidade integral que abarca todas as coisas, as coisas da natureza (res naturæ), mas também a natureza de todas as coisas (natura omnium rerum) e a natureza de cada uma delas (natura quisque rei).

É essa inclinação prática −a da ars iuris− que conduz os juristas a valer-se de uma amplitude (pode mesmo dizer-se quase infinita) de conhecimentos, abeberados na realidade da vida, e que vão da medicina à economia, da religião à filosofia, da retórica à história, da física à metafísica, porque toda a realidade da vida pode apreciar-se sob a perspectiva da ciência e arte do justo e do injusto.  É por isto que a chamada "sabedoria popular" pôde dizer que o estudo do direito "abre a cabeça". Ou seja, descerra toda a integral realidade da vida; nada lhe escapa ao interesse; a genuína jurisprudência romana, disse-o Biondo Biondi, "estende-se por todas as esferas das relações humanas e divinas (…)" (apud Juan Vallet de Goytisolo, Manuales de metodología jurídica, vol. IV, p. 18).

É interessante considerarmos que, sobretudo a partir do século XVI −ainda que possa apontar-se, a propósito e de modo emblemático, já na centúria posterior, o nome de Descartes−, passou a reduzir-se a realidade objeto das ciências em geral, o objeto da ciência do direito inclusive. Assim o referiu Ernest Hello, operou-se a "revolta da ciência", que, sem, por então, negar explicitamente a existência de Deus −negativa que viria a cumprir-se séculos depois−, tratou de dispensá-lo do campo científico. Prossegue Hello: "É verdade que Deus existe, dizia o século dezesseis, mas, para ser cientista, o homem deve agir como se ele não existisse, Procuremos, então, diria o século dezesseis, se fosse sincero, procuremos dispensar a verdade ocupando-nos da Ciência. Criemos uma Ciência independente de Deus, que é a verdade; separemos a Ciência da verdade" (in O homem −A vida, a ciência e a arte, ed. 2015, p. 180).

Há, pois, nesta ciência reducionista −cujo objeto, pois, restringiu-se arbitrariamente− um ânimo de rebelião contra a natureza das coisas (porque essa natureza foi ditada por seu Criador), de maneira que as ciências todas, e a do direito com elas, separaram-se, enfim, da ordenação natural e, ao perderem a unidade do ordenado conhecimento das coisas, essas ciências divorciaram-se umas das outras. Só a custo, agora, tratam de recuperar alguma sorte de diálogo pluridisciplinar, mas sem atingir a unidade do saber científico.

Continuaremos.