Sobre a ciência notarial e a ciência registral (parte 25)

Des. Ricardo Dip

 

Depois de examinarmos a formação do ato humano −com os sucessivos trânsitos processuais entre as potências do entendimento e da vontade−, começamos, na exposição imediatamente anterior a esta, a considerar a estrutura do discurso prático. 

No ponto que nos interessa especificamente, o de que se trata é de apreciar o modo do processo prático-racional com que os notários e registradores chegam, propter officium, a suas correspondentes conclusões de qualificação (que, como ficou dito, é o último juízo prático desse processo de raciocínio, e dizer último juízo da razão prática é dizer consciência). 

Embora seja este o ponto específico relevante para nossa apreciação −que se desenvolve no plano do direito notarial e do direito registral−, cabe observar que a estrutura do discurso prático é exatamente a mesma para todos os raciocínios operativos, de maneira que não se deve pensar haja, formalmente, uma especialidade notarial ou registral de raciocínio. O que distingue esses campos −o das notas e o dos registros− em relação seja ao âmbito geral do discurso prático, seja ao plano mais estrito dos raciocínios jurídicos (que são espécie do discurso prático geral), é o conteúdo, a matéria sobre a qual incide a forma discursiva.

Vimos na explanação anterior que todos os discursos práticos têm por premissa maior o primeiro princípio da sindérese −bonum faciendum, malum vitandum−, com que se resolve o problema da infinitude regressiva dos raciocínios (o que, não se solucionasse, redundaria na impossibilidade de raciocinar validamente, é dizer, com o objetivo de chegar a alguma verdade). Esse princípio −ou, agora, essa premissa maior (bonum faciendum, malum vitandum −agir o bem, evitar o mal)− especializa-se, no discurso jurídico, para atender aos requisitos da alteridade e do débito estrito, assim enunciando-se: iustum faciendum, iniustum vitandum −agir o justo, bem devido estritamente a outrem, e não agir o injusto, mal estritamente nocivo a outrem.

A partir deste ponto, há um problema inicial a referir. É discutível isto, mas não parecerá irrazoável que essa premissa maior possa, desdobrar-se, não apenas sempre que a segunda premissa (chamemo-la assim) puder do primeiro princípio sinderético inferir-se sem médio (p.ex., estas que se costumam considerar normas primárias da ordem moral: "é vedado o homicídio do inocente", "é proibido furtar", "´´e defeso o falso testemunho", etc.), mas também quando dela haja uma inferência com médio, ou seja, normas que não sejam reputadas por primárias da ordem ética, senão que secundárias ou até mais longínquas do primeiro princípio da sindérese. É que de não admitir-se este desdobro da maior, a conclusão do raciocínio não poderia julgar ou enunciar com expresso extremo maior. (Isto é muito controverso, reitere-se).

Como quer que seja, a parte antecedente do discurso enuncia-se como no exemplo que segue, exemplo que se especifica para o raciocínio de um registrador de imóveis, propter officium, e não considera no caso a hipótese de desdobramento da maior:

Premissa maior: Devo agir o justo e evitar o injusto (especialização do princípio bonum faciendum, malum vitandum).

Premissa maior (desdobramento): O contrato de compra e venda de imóveis é suscetível de registro stricto sensu no ofício imobiliário competente.  

Premissa menor: A escritura que agora se examina é um contrato de compra e venda de imóveis.

Outra premissa menor: Esta escritura satisfaz os requisitos formais como título de compra e venda, bem com os supostos exigíveis para seu registro. (Neste passo, cabe considerar um tanto os discursos complexos, e, de modo especial, o epiquerema, ponto de que cuidaremos na próxima explanação desta série.