Des. Ricardo Dip
Quando se considera, assim o vimos na explanação da semana passada, a estruturação da trajetória formadora do ato humano, a fase correspondente ao «último juízo prático» −o que os pensadores clássicos designaram iudicium practicum mediorum discretivum−. sendo a fase própria para encerrar a ordem de escolha dos meios para a ação, não deixa, entretanto, de ser uma fase já nutrida pela intenção dos fins. Bastasse fosse a avaliação dos fins, estaria legitimado o sistema consequencialista no plano moral, ou seja, o de os fins justificarem os meios.
Pois bem, esta fase do último juízo prático é a que, por assim dizer, consuma ou remata o ato da consciência, sem excluir que essa atualização seja apenas conclusiva do processo integral do entendimento (não ainda executório) em sua função prática, porque esse juízo prático é juízo dos fins e dos meios, e não só dos meios. Uma coisa, portanto, é a consciência em seu processo (conscientia in itinere), outra, a consciência como ato aperfeiçoado (conscientia effecta).
O que agora interessa considerar é a consciência no desenvolvimento lógico do discurso prático, destacadamente porque nossa tratativa da matéria tem por objeto o discurso próprio do registrador (e também do notário) que conclui numa qualificação, que é exatamente, segundo entendemos, o juízo ou ato da consciência.
Em todos os discursos racionais −sejam os de natureza especulativa, sejam os de natureza prática−, para contemplar a possibilidade de concluir-se de modo materialmente verdadeiro, a premissa maior sempre haverá de ter caráter principiológico, porque, de não ser assim, ter-se-ia de regredir ao infinito para fundamentar as certezas, e o regresso ad infinitum implicaria a óbvia impossibilidade de conclusão certificada alguma: é que sempre se teria de retroceder, infinitamente, a uma proposição anterior para firmar cada juízo que se emitisse. E nunca haveria um fim no processo discursivo.
É certo que superar a inviabilidade de um retrocesso ao infinito não significa igualar os graus de certeza, mas leva a que, com a gradação certificante que corresponda, possa concluir-se de modo plausível, sem recair num ceticismo desesperante. Por outro lado, uma conclusão com certeza metafísica, outra com certeza física, outra ainda com certeza moral, todas elas são conclusões. Todas elas podem ser conclusões formalmente retas e materialmente verdadeiras ou, quando menos, dialéticas (prováveis ou possíveis). Pagam para isto, no entanto, um tributo inevitável: o de terem à partida um ou mais princípios indemonstráveis, ora de caráter especulativo ou teórico que nos assina o hábito do intellectus principiorum (p.ex., o princípio da não contradição), ora, como expansão desses mesmos primeiros princípios do entendimento especulativo: os que se hospedam na potência intelectual qualificada pelo hábito da sindérese (bonum faciendum, malum vitandum −agir o bem, evitar o mal).
Todo discurso prático −é dizer, todo raciocínio do entendimento em sua função operativa ou prática− tem por premissa maior esse princípio da sindérese: bonum faciendum, malum vitandum. Também isto, por evidente, assinala-se no discurso prático dos registradores e dos notários, talvez, em sua atuação propter officium, com uma dada especificação: iustum faciendum, iniustum vitandum, porque isto resulta da especialização do bem jurídico em relação a seu gênero próximo, o bem moral. Daí que o primeiro princípio na ordem ética seja «agir o bem, evitar o mal», e, na ordem jurídica, «agir o bem, não qualquer, mas o jurídico (ou seja, o devido a outrem), e evitar o mal, não qualquer, mas o injurídico (isto é, o nocivo a outrem)». A especialização desse bem e desse mal resulta da exigência do requisito da alteridade que é um próprio do direito.
Desta maneira, o discurso prático da qualificação registral e da qualificação notarial sempre começa por esta premissa maior: «Devo agir o bem, não qualquer, mas o devido a outrem; devo evitar o mal, não qualquer, mas o nocivo a outrem» −ou, noutra formulação: «Devo ser justo; não devo ser injusto».
Esta é inafastável premissa maior de todos os raciocínios qualificadores que articulem os oficiais de registros públicos ou os notários.
Mas é só a premissa maior. O discurso prático tem de prosseguir, e, como isto se desenvolve, será o objeto de nossa próxima exposição.