Des. Ricardo Dip
Pode tributar-se a Enrique Zuleta Puceiro a oportuna reconsideração do discrimen entre os conceitos, de um lado, de compreensão, e, de outro lado, de interpretação. O tema foi abrigado, com a costumeira acuidade, por Juan Vallet de Goytisolo, como se recolhe, por exemplo, nas páginas de seu excelente Metodología jurídica (ed. Civitas, Madri, 1988).
A questão, trasladada de maneira especificada, para o campo do direito é esta: a interpretação jurídica é o mesmo que a compreensão jurídica? Ou, por outra, distinguem-se suas realidades?
Zuleta observara que, em nossos tempos, foi desaparecendo (e já até se perdeu) a distinção que era clássica, entre essas noções que agora se confundem: compreensão e interpretação. Predominou a segunda, definidamente como simples exegese a partir de uma aproximação literal e ahistórica do direito, cuja aplicação fica assim reduzida a uma atividade meramente técnica (o fato está já subsumido à norma).
Classicamente, no entanto, a compreensão e a interpretação são coisas diversas.
Propriamente, a compreensão é uma das propriedades dos termos (de par com a extensão), na qual se encontram as notas constitutivas do conceito correspondente. Assim, a ideia de homem compreende as notas «animal» e «racional» (são seus predicáveis essenciais: gênero e diferença específica, respectivamente) ou «animal falante» (por meio do proprium «falar«).
Já a interpretação, bem o referiu Vallet, procede do latim interpres, interpretis (mediador, negociador, intermediário), relacionando conceitos, ou mais exatamente, relacionando coisas objeto de conceitos.
Tal o fez ver Vallet, deve-se, de algum modo, ao nominalismo de Ockham (que sustentou a inviabilidade de uma ordem jurídica racional) e, com ele, ao voluntarismo (subjetivo) do legislador (p.ex., Windscheid, Bierling) ou ao voluntarismo (objetivo) da lei (Kohler, Binding, Wach, Radbruch), absorvendo-se o conceito de compreensão no conceito de interpretação.
Todavia, ao passo em que uma fonte literal jurídica pode ser compreendida para dela por si só extrair-se, na expressão de Karl Larenz, seu significado ou sentido normativo, essa mesma fonte só pode ser interpretada quando se relacione à coisa singular por ela disciplinada. É verdade que não se pode entender esse «por si só» num sentido próprio do legalismo abstrato, porque os fatos concretos alimentam a compreensão das normas; nada obstante, o de que se trata é de não exigir que a compreensão deva relacionar-se com fatos concretos.
Assim, para interpretar-se uma dada lei, com vistas a sua aplicação (ainda que hipotética), é preciso antes compreendê-la e ainda compreender o fato a que se destina. Trata-se, pois, primeiro da compreensão da lei e da compreensão (ou diagnose) do fato a que corresponda. É à relação entre essa lei e o fato que se deve dar o nome de interpretação.
A interpretação de uma norma é sempre a mediação entre essa norma e as exigências da realidade, e é bem por isso que, ao revés do que ocorre com a mera exegese (restrita a processos silogísticos abstratos), a verdadeira interpretação jurídica é a que busca, medianeira entre norma e fato, encontrar a res iusta natural, ou seja, o que é naturalmente justo.