Notário, para onde vais? (segunda parte)

Des. Ricardo Dip

Como já deixei dito, trato aqui de trazer à consideração −nestas nossas «Claves notariais e registrais»− o texto que elaborei, a pedido do Tabelião José Renato Vilarnovo Garcia, Presidente da seção do Rio de Janeiro do Colégio Notarial do Brasil, texto esse que se publicou no primeiro número da revista O notário contemporâneo (julho a setembro de 2023).

Aqui e ali penso fazer alguns comentários ao texto.

A civilização que somos

Um verdadeiro conhecimento histórico −quer dizer, um conhecimento da realidade efetiva do pretérito e não a elaboração ficcional de devaneios ideológicos− tem a virtude não só de saber o que foi o passado, mas de subsidiar a compreensão do presente e de sugerir prudentemente o que convém, dentre os futuros contingentes, possa ser um futuro melhor, ensinando-nos, quanto a este, os meios legítimos de nossa própria cooperação responsável.

O passado do Brasil, gostemos ou não de suas características e origens (há quem preferisse fossem outros povos, que não o português, nossos semeadores, com que, tanto se dera isto, poderíamos, por exemplo, contarmos em nossa própria história experiência símile ao do apartheid), mas, de novo: nosso passado, apreciemos este fato ou não, é isto o que foi realmente, e "seria ridículo pretender que o Brasil exista independente de sua formação portuguesa" (Gilberto Freyre, O mundo que o português criou, ed. É realizações, são Paulo, 2010, p. 21). Se é verdade que esta última referência considerava a amplitude da dimensão cultural, não parece demasiado, entretanto, que possa ela estimar-se de modo especializado no âmbito da ordenação jurídica, certo até que a invenção dos territórios das antigas Índias (era este o nome dado às nossas Américas) "parecia atribuir um direito análogo ao direito da conquista nos tempos medievais" (Joaquim Pedro de Oliveira Martins, O Brasil e as colónias portuguesas, apud Waldemar Ferreira, História do direito brasileiro, ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro -São Paulo, 1951, tomo 1, p. 32; acrescenta o mesmo Waldemar Ferreira: "estava assim predeterminado o sistema de colonização do Brasil"). Por isso é que não se compreenderão adequadamente o Brasil e sua inicial organização jurídica, se não considerarmos suas raízes históricas, seu enracinement medieval na Península hispânica, aqui que foi estabelecendo a definição paulatina de Portugal.

É preciso prevenir, à partida, que não parece possível, em um pequeno estudo sobre o tema, ir além de algumas escassas considerações, às vezes impressionistas; de toda sorte espera-se que gráficas o bastante para caracterizar o influxo do Medievo hispânico na ordenação jurídica brasileira. Para que se tenha uma simples mostra da relevância desse influxo do direito medieval hispânico em nosso direito brasileiro, considerem-se as diversidades dos regimes das terras do Reino português (de senhorio, de concelhio e de reguengos −como os refere, p.ex., José Mattoso, Identificação de um país -Ensaio sobre as origens de Portugal, ed. Estampa, 5.ed., Lisboa, 1995, p. 70-71.), do privilégio da posse de ano e dia, do penhor imobiliário, da compra e venda de rendas (que veio a designar-se censo consignativo), da enfiteuse, da complantação (vidē Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, ed. Almedina, 3.ed., Coimbra, 1966, p. 167 e 196-200), com seus espelhismos matizados na ordenação dos primeiros tempos da civilização do Brasil.

Foram suficientes cerca de três a quatro anos para que uma fulminante investida islâmica (711-714) dominasse quase toda a Península ibérica, abstraída a resistência nortenha, em que a geografia áspera dos Montes Cantábricos e a virtude da fortaleza de um punhado valioso de visigodos conspiraram para a lenta e gradual retomada das terras peninsulares e, nelas, para a restauração dominante da cultura cristã (em que pese a nisto haver uma simplificação, pois a maior parte dos hispano-godos, ainda sob o domínio muçulmano na Península, perseverou na fé cristã; eram os moçárabes, de que se distinguia a menor parte que apostatara da fé em Cristo, os muladis). Foi esta uma recuperação que se estendeu por cerca de oito séculos até consumar-se vitoriosa, num resgate pago pelo preço do sangue de tantos Maiores da Hispanidade. A pouco e pouco, paulatinamente, foi como herdeiros do Reino das Astúrias −"Na Hispânia, os séculos XI e XII veem a lenta definição e, a seguir, a expansão e consolidação de algumas entidades políticas cristãs de grande alcance, herdeiras, por um lado, do Reino das Astúrias, núcleo inicial da resistência cristã à invasão muçulmana…" (assim, Massimo Pontesili, "Os reinos cristãos da Hispânia", in VV.AA. org. Umberto Eco, Idade Média -Catedrais, cavaleiros e cidades, ed. D.Quixote, 2.ed., Alfragide, 2016, p. 111) −, mas, de novo: herdeiros do Reino das Astúrias, que, do Norte fronteiriço do Minho  −o Norte, berço histórico de Portugal −"Du Nord, je dirai tout de suite qu'il est le berceau historique du Portugal, la partie le plus portugaise, le premier condensateur de l'énergie nationale" ( Gonzague De Reynold, Portugal, ed. Spes, Paris, s.d., p. 87)− descenderam, rumo ao Douro, ao Mondego, ao Tejo, até ao Algarve, os três sucessivos Condados portucalenses.

Acolhe-se aqui o entendimento de que foram três os Condados Portucalenses: primeiro, o instituído em 868, quando se atribuiu a administração condal e hereditária do território entre os rios Minho e Douro, sob a vassalagem ao Reino de Leão, a Vimara Peres (c. 820-873); segundo, o concedido à gestão do Conde Raimundo de Borgonha, por então Rei da Galícia, em 1191 −aquele primeiro regime condal portucalense se extinguira em 1171, quando o Rei de Leão venceu o insurrecto Nuno Mendes, que almejava a independência do território do Condado−; terceiro, por fim, o que se atribuiu ao governo do Conde Henrique de Borgonha −genro de Dom Alfonso VI, de Leão e Castela−, em 1196 (veja-se Diogo Freitas do Amaral, Da Lusitânia a Portugal, ed. Bertrand, Lisboa, 2017, p. 56 et sqq.).

Prosseguiremos.