Notário, para onde vais? (conclusão)

                                       Des. Ricardo Dip

           Mais uma vez trago-lhes à consideração −nestas nossas «Claves notariais e registrais»− um pequeno estudo que elaborei, a pedido do Tabelião José Renato Vilarnovo Garcia, Presidente da seção do Rio de Janeiro do Colégio Notarial do Brasil, estudo esse que se publicou no primeiro número da revista O notário contemporâneo (julho a setembro de 2023). Pretendo aqui glosá-lo num e noutro ponto.

           Num tempo em que campeia a desconstrução das instituições −para o caso específico do notariado brasileiro, sua progressiva deslatinização−, peço licença para falar em primeira pessoa (do singular). Acredito mesmo, talvez um tanto ingênua (e pretensiosamente), que algum direito eu teria de fazê-lo, pelo muito amor de que, há quatro décadas, padeço confessadamente pela instituição extrajudicial.

           Desejo relatar um episódio.

           Estava ainda outro dia na cidade portuguesa de Sintra, e ouvi então um belo fado, cujo refrão segredava algo que logo me recordaram as notas e os registros  públicos.

           Fui sindicar um pouco a história desse fado: seu compositor foi Joaquim Frederico de Brito (mais conhecido como Britinho). Foi ele um português nascido em Oeiras no ano de 1894 e morto em 1977. Peço que reservemos por agora, com muita atenção, esta data do nascimento: 1894; ela é uma das chaves para bem entender o que segredou o refrão.

           Pois bem, calha que em 1972 Britinho compôs esse referido fado, Canoas do Tejo, cuja primeira gravação se fez no ano seguinte, com a interpretação de Carlos do Carmo. Um fado de sucesso imediato: seu estribilho parecia mesmo grudar na memória, e cantavam-no muitos, da nortenha Valença do Minho à cidade algarvia de Faro, e eu próprio (para algum incômodo dos que me acompanhavam) fiquei lá em Sintra e durante o resto de minha viagem pelas terras do Santo Condestabre, cantarolando, vira e mexe, o muito harmônico refrão do Canoas.

           Já que escrevo agora em primeira pessoa, acho que podem interpelar-me sem delonga: que, contudo, podem dizer-me, têm a ver as canoas do rio Tejo com nosso notariado brasileiro?

           Joaquim Frederico de Brito, o Britinho, como ficou dito, nasceu em 1894. Isto quer dizer que ele, adolescente, testemunhou com os próprios olhos, a partir de dezembro de 1910, o acerto da sentença popular de ser boa a república no tempo da monarquia. Foi a culminância do estado de coisas que Oliveira Martins avistara já no começo do século XIX: uma «anarquia espontânea». Isto parece mesmo verdadeiro em toda a parte. Viu o nosso Britinho a instabilidade que, apartando-se da tradição, o novo regime de 1910 instaurou em Portugal, com 40 gabinetes parlamentares a sucederem-se entre 1912 e 1926, a balbúrdia nas ruas, o caos de uma economia soçobrada, golpes vitoriosos e frustrados, uma ditadura, afinal, implantada para durar −ainda que ali, de fato, haja sido um mal menor, uma tábua de salvação− por pouco menos de 50 anos.

           Acontece que, em 1972, imunizado de ilusões, o Britinho parece que tratou de avisar o bom povo português de uma grande turbação que se avizinhava. Não, não teve êxito em seu aviso. O estribilho, conhecido de cor, cantava-se então do Norte ao Sul da terra de Dom Nun'Álvares, mas o mistério de sua metáfora −um segredo que, no fim e ao resto, sequer se segredava muito bem, por ser tão notório nos versos do refrão−, esse mistério não o compreendeu a tempo o povo lusitano.

           Assim dizia o estribilho:

           Canoa, conheces bem

           Quando há norte pela proa,

           Quantas docas tem Lisboa

           E as muralhas que ela tem.

           Canoa, por onde vais,

           Se algum barco te abalroa,

           Nunca mais voltas ao cais,

           Nunca, nunca… nunca mais. 

           Notário brasileiro, por onde vais?