(Uma proposta de solução)
Des. Ricardo Dip
Tal o indicamos na explanação da semana anterior, há um conflito −que não é de todo raro− entre, de um lado, restrições convencionais levadas ao registro de imóveis e norma urbanística posterior.
A hipótese padrão é a de um proprietário de lotes que, num dado parcelamento, obtém autorização construir prédio, por exemplo, com 12 pavimentos. Calha que, ao instituir-se esse parcelamento, pactuaram-se restrições conflitantes com o novo projeto de edificação, indicando-se um limite vertical de construção a, por exemplo, seis andares.
Indicamos, então, as soluções possíveis:
•prevalência sempre das restrições convencionais (a despeito da lei posterior);
• aplicação sempre das normas pósteras (a despeito das restrições convencionais);
• apreciação casuística da maior ou menor relativa gradação de atendimento ao bem comum;
•conciliação, segundo a própria normativa, dos interesses convencionais e públicos.
As duas primeiras correntes enfrentam-se em que recusam uma possível convivência dos interesses privados (que a Lei 6.766, de 1979, prevê no inc. VII de ser art. 25: «declaração das restrições urbanísticas convencionais do loteamento, supletivas da legislação pertinente») e os interesses urbanísticos. Ao fim, nessas correntes extremas, recusam-se ora uns, ora outros desses interesses.
A terceira corrente, que se beneficia de atender à vantagem circunstancial da preponderância ora da lei, ora das restrições pactuadas, tem o inconveniente de apoiar-se em alguma sorte de subjetivismo.
Caberia cogitar, pois, da adoção de um critério de caráter objetivo, que resulte do peculiar significado normativo das previsões legais. É possível, com esse critério, ressalvar uma esfera de autonomia privada (para o caso brasileiro, cf. o referido inc. VII do art. 26 da Lei 6.766, de 19-12-1979), sem, com isso, desprezar a relevância das normas urbanísticas, que são próprias do direito público e, por essa razão, normas cogentes (veja-se José Afonso da Silva, Direito urbanístico brasileiro, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1981, p. 74 e 75), certo que a ordenação territorial urbana é uma função pública (Luciano Parejo Alfonso, Derecho urbanístico -Instituciones básicas, ed. Ciudad Argentina, Mendoza, 1986, p. 42 e 43).
Para que, de um lado, possa resguardar-se a coercitividade da norma legal urbanística, sem que, de outro lado, haja menosprezo de um âmbito próprio à legalmente prevista autonomia das vontades particulares, deve exatamente prevalecer a lei, segundo a classe da correspondente regra de conduta.
Como é sabido, de três modos classificam-se as regras de conduta. São elas (i) regras preceptivas, (ii) regras proibitivas e (iii) regras permissivas.
Quando a lei, de maneira cogente, impõe ou proíbe condutas, contra a norma não cabe confrontar validamente um pacto particular. Em outras palavras −moldadas ao caso destes autos−, se uma lei urbanística preceitua ou veda uma dada conduta na esfera urbanística, inviável é que a ela se oponham convenções privadas.
Diversamente, se a lei, ainda que cogente, permite condutas, ela convive com pactos particulares que abdiquem da realização dessas condutas. Assim, a título ilustrativo, se uma lei, em dado local, passa a admitir o desdobro de um lote de 500m2, isso não significa que uma restrição contratual não possa estorvar essa segregação do imóvel, desde que se admita em lei a possibilidade dessa mesma restrição particular.
Objetar-se-á −e não se nega o relevo desta objeção− que a norma permissiva ulterior confere um direito subjetivo recusado pela restrição precedente, mas o fato é que nada impediria pudessem os particulares, após a vigência da lei nova, abdicar da conduta permitida. Assim, p.ex., ao registrar-se um parcelamento do solo, admite-se uma restrição desse gênero, porque a conduta objeto não é preceituada, nem defesa, mas somente concedida aos particulares que a quiserem seguir (veja-se acerca da persistência das cláusulas convencionais mais gravosas do que as leis dos municípios: Gilberto Valente da Silva, «As restrições do loteamento −A prefeitura municipal e o registro de imóveis», em VV.AA., Doutrinas essenciais Direito registral, org. Sérgio Jacomino e outro, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011, vol. IV, cit. p. 997, in medio).
De fato, o problema que se avista está em saber se a norma urbanística permissiva se destina, de maneira principal, ao prestígio de situações individuais ou ao de situações comunitárias. Parece ser de consenso que o direito urbanístico visa, sobretudo, ao bem comunal. Por isso, as restrições privadas instituídas com o contrato padrão de um parcelamento registrado prevalecem −em favor da comunidade− até que haja regra legal preceptiva ou proibitiva que as enfrente, ou que, por novo pacto, venham a alterar-se.
Com efeito, até que uma coisa ou outra ocorra, essas restrições convencionais constantes do contrato padrão nos parcelamentos devem prevalecer com imposição a todos os que adquiram lotes desses parcelamentos, porque essas restrições se configuram, tanto que levadas a registro e preservadas de fato, como persistentes ônus reais ou, noutra acepção, obrigações propter rem (cf., a propósito, Antonio Junqueira de Azevedo, «Restrições convencionais de loteamento», in em VV.AA., Doutrinas essenciais Direito registral, o.c., vol. IV, p. 812 et sqq.). Ou seja, são ônus ou obrigações integradas ao estatuto dominial e que têm natureza ambulatória, de sorte que acompanham o direito real, nada obstante sua transmissão.
Afrânio de Carvalho ilustrou o assunto com um episódio muito gráfico: o das restrições contratuais que assinem o uso exclusivamente residencial dos imóveis em um dado loteamento. Então, disse o autor, dá-se o «vaivém de alvarás da Prefeitura», e lembrou que o STF invocou, de maneira incidental, «a opinião de Hely Lopes Meirelles, segundo o qual as restrições urbanísticas gerais convivem com as especiais, estipuladas convencionalmente entre os particulares no interesse coletivo (…)» (o STF, nesse caso, não conheceu do recurso extraordinário, mantendo-se um acórdão que acolheu interdito proibitório para impedir a transformação de uma residência em comércio −cf. «Restrições urbanísticas em loteamento», em VV.AA., Doutrinas essenciais Direito registral, o.c., vol. V, p. 1.064 e 1065).